segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

O crucifixo da paixão enquanto respirava

 Senta-se à secretária

Semeia os cotovelos sobre a mesa

Puxa de um cigarro

Enquanto procura o isqueiro na algibeira

Pensa

Volta a pensar

Escreve algo rápido com o olhar

Na estante recheada de livros

E encontra “o medo de AL Berto”

E recorda os tempos em que começou a ler AL Berto

Finais de oitenta

Princípios de noventa

(há muito temo)

Mas ele está lá

(E todas as noites oiço-o)

Ele acende o cigarro

Desenha um círculo

E de uma ou duas baforadas

Percebe que valeu a pena.

 

Ele continua sentado

Cotovelos apoiados na invisível linha do Equador

E recorda-se de quando regressou de Angola

Num enorme paquete de sono

Ter as mãos apoiadas no gradeamento

E tenta com o olhar

Descobrir a linha imaginária do Equador;

Acreditou que era

Sorriu tanto

Mas hoje

Ele percebe que não era a linha imaginária do Equador…

Podia lá ser.

 

Às vezes

Muitas vezes

Também sinto o medo

E quando tenho medo

Abro-o

Abro o medo de AL Berto.

 

Ele

De olhar perdido na estante recheada

Recorda a vizinha do segundo esquerdo

Falecida na semana passada

Senhora de oitenta e quatro anos

Bibliotecária quando da sua vida activa

E o que dizer da dona Guilhermina

Tudo

Nada

Talvez pouco quando se nasce

E muita coisa quando se está de partida

Coitada da senhora

Boa piquena

Ainda virgem (apenas de signo)

Muito educada

Blá-blá-blá

E finou-se numa noite de Dezembro

Sem electricidade

Sem nada

Com tudo

Coitada da senhora

E quando perguntei ao sobrinho

Morreu de quê a dona Guilhermina

Ele

Triste

Respondeu-me que…

Olhe

Morreu de tristeza.

 

E um poeta como eu

Que de nada percebe de certidões de óbito

Ou de metástases

Ou de toda essa merda…

Não sabia que se morria de tristeza.

 

Andando que se faz tarde.

 

Ele foi tomar o duche do fim de tarde

Vestiu a farda

Calçou as pesadíssimas botas militares

E zumba

Portão fora

Patrão dentro

E vai ele rumo à cidade,

 

Desce a calçada

Apressadamente

Ao fundo da calçada

Vira à direita

Marcha

E enquanto marchava

Ouvia os piropos dos gajos que procuravam sexo

Diziam que bem pago

E com medo

Não o medo de AL Berto

Mas com o medo de ser enrabado

A sangue-frio

E no final receber cinco mil escudos

(diziam que o broche era mais caro)

Desatava a correr

E só parava numa esplanada

E já dentro dela

A menina

A menina escondia-o na despensa;

Quase com o coração a saltar-lhe pelas goelas

Suspirava baixinho

Foda-se. Foda-se.

 

(onde vim eu estacionar)

 

E eu

E eu habituei-me a estacionar em muitos locais da cidade

Gostava do perigo

E claro

Conversar com o medo.

 

Engoliu o penúltimo silêncio de fumo

E pensou

E talvez não tenha pensando em nada

Porque enquanto contava os silêncios de fumo que lhe restavam

Perdeu-se nos pensamentos

Perdeu-se na cidade

Abre um pequeno livro com o olhar

Começa a ouvir A Tabacaria

A tabacaria do Senhor Álvaro de Campos

Na voz do grande Mário Viegas

Parou

Mexeu os cotovelos

Colocou o que restava do cigarro

No cinzeiro de madeira

Porque o cinzeiro de prata já o tinha vendido

Algures na feira da Ladra

Onde tudo se compra

Onde tudo se vende

(e um dia quase que me vendi a uma velhinha)

E depois de fazer o funeral ao que restava do cigarro

Pensou então

Pensou que o medo está para o poeta

Tal como a chuva está para o magala;

É tudo uma questão de psicologia.

 

(a chuva o frio o medo o caralho que te foda e é tudo uma questão de psicologia)

 

A roupa que o diga (quando chove) (grandes filhos da puta)

 

Levanta-se da secretária

Vai até à janela

Abre-a cuidadosamente

Com medo

Com o medo

Com medo que o mar lhe entrasse pela janela

(este parvalhão não percebe que o mar nunca chegará ao terceiro andar)

E percebe que já é noite

Que alguém roubou todas as estrelas da noite

Que no Tejo um petroleiro apeado

Esperava que regressasse a madrugada para se abraçar a terra.

 

E lá está ela

Suspensa na parede

Pregada a uma cruz de luz

Cinzenta

Verde

Laranja

STOP

E morreu de quê a menina Guilhermina

Entre a voz do Mário Viegas a declamar a Tabacaria

E o silêncio do segundo esquerdo

É perfeitamente audível

Morreu de tristeza

Queria que ela morresse de quê

Sou parvalhão

Calmeirão,

 

(TRISTEZA)

 

O senhor oficial

Bem fardado

Diga-se

Com uma mão no volante

A outra

E com a outra entre a manete de velocidades

E o pénis do rapaz que seguia a seu lado

Tentava engatá-lo com promessas de falso oiro

E meia-dúzia de camelos

Ele cerrou as pernas

E enquanto a cidade se perdia em direcção Santa Apolónia

O carro parou

O gajo saiu apressadamente

Deixou cair a mochila no pavimento

E só parou dentro da estação.

 

(há coisas do caralho

Pensou)

 

E continuando com a

E lá está ela

Suspensa na parede

Pregada a uma cruz de luz

Cinzenta

Verde

Laranja

Encarnada

Encarnada sim senhor que eu bem vi com estes que a terra há-de comer

Pensou novamente no medo

Agora no medo de AL Berto

E não sabia se o pior medo da sua vida era que o mar lhe entrasse pela janela

Ou

Ou a doce donzela suspensa na parede do escritório

(Pregada a uma cruz de luz

Cinzenta

Verde

Laranja

Encarnada)

Tanto faz…

 

Tanto faz quando a noite é uma merda

Com estrelas

Sem estrelas

Com palavras

Sem palavras

Com lua

Sem lua

Com sol

Com sol

Quando o rabo está em direcção a Norte…

E um lindo crucifixo nos olha;

 

(E lá está ela

Suspensa na parede

Pregada a uma cruz de luz

Cinzenta

Verde

Laranja

Encarnada).

 

Encarnada de mini-saia e de cigarro ao canto da boca.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 12/11/2022

Francisco Luís Fontinha

O teu olhar

 

Desenho um pedacinho do teu olhar

Na tela triste da manhã

Porque todas as manhãs…

Todas as manhãs são tristes

Sem um pedacinho do teu olhar.

 

E se apenas um pedacinho do teu olhar

Alegra a manhã

Imagina se desenhasse todo o teu olhar…

 

Imagina se eu tivesse a manhã

Só minha

A manhã e o teu olhar!

 

 

Alijó, 12/12/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 11 de dezembro de 2022

Poucos dias um dia

 



Perguntavas-me o que eu queria ser

Um dia.

Olhava-te

Olhava-te e fixava o meu olhar no céu

E nunca tive coragem de te responder;

E tivemos muitos dias

Só eu e tu

Só tu e eu

E mesmo quando te vi a voar

Sobre as nuvens envenenadas da tristeza

Eu

Eu não tive coragem de dizer-te

Apenas

Que não queria ser nada

Ninguém.

 

Mãe

Simplesmente não quero ser nada

Ninguém;

Percebes?

 

Podia ter sido muita coisa

Umas boas

Outras más

Poderia ter sido estilista

Carpinteiro

Pedreiro

Agricultor…

Não

Nunca gostei da agricultura

Poderia ter sido serralheiro

Motorista não

Não

Nunca gostei muito de automóveis

Camiões

Não saí aos meus avós e pai

Eu era mais barcos

Poderia ter sido tanta coisa…

 

E hoje escrevo

E enquanto escrevo

Sei que não sou nada

E enquanto pinto

Nada sei que serei.

 

Também nunca quis ser o que não podia ser

Tão pouco

Se queria ser

E no entanto

Aqui estou

Não sendo nada

Preferindo o nada ao tudo

E mesmo que seja muito

É pouco

É nada.

 

Aquando me olhavas

Eu

O comandante deste navio

Mentia-te;

E enquanto esperavas uma simples resposta minha

Eu

Fintava o olhar

E distraidamente

Respondia-te;

Está tão lindo o céu de Luanda mãe.

 

 

 

 

 

Alijó, 11/12/2022

Francisco Luís Fontinha

As sílabas da insónia

 Deste jardim de flores envenenadas

Onde oiço as pequenas sílabas da insónia

E vêm a mim as envergonhadas estrelas

Deste jardim sem sono

Onde semeio as lágrimas do luar

E planto a solidão do mar.

 

Neste jardim

Abandonado

Onde habita uma ponte invisível

Que me levará ao teu olhar.

 

Neste jardim de medo

Sem janelas

Sem casas

Sem ruas para caminhar

E deste jardim onde tenho pássaros em silêncio

E tenho o vento a soprar;

Neste jardim sem barcos…

Os meus barcos de brincar.

 

 

 

 

 

Alijó, 11/12/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 10 de dezembro de 2022

A loucura de um doido pequeno cubo de vidro

 Todas as minhas noites

As pequenas noites que habitam em mim

São também elas

Um pequeno cubo de vidro

Sem janelas,

 

A noite é só minha

Saio à rua

E roubo todas as estrelas

Depois

Guardo-as,

 

E enquanto te escrevo

Semeio-as nos teus doces lábios de mel

Um dia

Um dia a noite será uma planície de vento

Em direcção ao mar,

 

E uma criança brincará na areia

Livre como os pássaros da minha aldeia

Mas enquanto houver noite

Este cubo de vidro só meu

Viverá na tua loucura,

 

Também eu

Louco

Puxando uma corda invisível

Desenhando beijos nas mãos da geada

E imaginando as tuas mãos nas minhas mãos – enquanto houver noite e geada.

 

 

 

 

 

Alijó, 10/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Francisco Luís Fontinha – Mercado Bar Alijó




 

Se eu não morrer

 Se eu não morrer

Ensinar-te-ei a escrever as primeiras palavras

As tuas primeiras equações

Gostas de equações

As mais simples

Às mais complexas

Equações trigonométricas

Equações de segundo grau

Equações diferenciais

 

Se eu não morrer

Levar-te-ei a ver o primeiro clarear da manhã

O teu primeiro luar

O primeiro pôr-do-sol

Se eu não morrer

Ler-te-ei o primeiro poema

Tantos poetas que tenho para te mostrar

Herberto

AL Berto

O'neill

Cesariny

Se eu não morrer

Ler-te-ei textos de Proust

Gogol

Ou de Luiz Pacheco

 

Se eu não morrer

Ensinar-te-ei a desenhar nos lábios da madrugada

A pintar o sono na geada

Se eu não morrer

Levar-te-ei a ver o mar

E os barcos da minha infância

E as mangueiras da minha infância

 

Se eu não morrer

Ler-te-ei os meus textos

Os meus poemas

Os meus livros

E mostrar-te-ei as minhas telas

 

Se eu não morrer

Mostrar-te-ei como se constroem pontes

Edifícios muito altos

 

Se eu não morrer

Oferecer-te-ei os teus primeiros livros

As tuas primeiras tintas

As primeiras telas

Se eu não morrer

Tirar-te-ei os teus primeiros retractos

E conhecerás as tuas primeiras cidades

Vilas

E aldeias

Se eu não morrer

Levar-te-ei ao Tejo

E a todos os rios do Planeta

Onde há um rio para olhar

 

Se eu não morrer

Ouvirás todo o tipo de música

E assistirás a todo o tipo de dança

Se eu não morrer

Levar-te-ei ao circo

Ao teatro

Cinema

 

Se eu não morrer

Farei tudo isso

Enquanto sentado numa cadeira em frente à Baía de Luanda

Espero que me levem

Que me levem para as sombreadas paisagens de prata

E me deixem brincar no telhado zincado de uma nobre cubata

 

Se eu não morrer.

 

 

 

 

 

Alijó, 10/12/2022

Francisco Luís Fontinha