Senta-se à secretária
Semeia os cotovelos sobre
a mesa
Puxa de um cigarro
Enquanto procura o isqueiro
na algibeira
Pensa
Volta a pensar
Escreve algo rápido com o
olhar
Na estante recheada de
livros
E encontra “o medo de AL
Berto”
E recorda os tempos em
que começou a ler AL Berto
Finais de oitenta
Princípios de noventa
(há muito temo)
Mas ele está lá
(E todas as noites oiço-o)
Ele acende o cigarro
Desenha um círculo
E de uma ou duas baforadas
Percebe que valeu a pena.
Ele continua sentado
Cotovelos apoiados na
invisível linha do Equador
E recorda-se de quando
regressou de Angola
Num enorme paquete de
sono
Ter as mãos apoiadas no
gradeamento
E tenta com o olhar
Descobrir a linha imaginária
do Equador;
Acreditou que era
Sorriu tanto
Mas hoje
Ele percebe que não era a
linha imaginária do Equador…
Podia lá ser.
Às vezes
Muitas vezes
Também sinto o medo
E quando tenho medo
Abro-o
Abro o medo de AL Berto.
Ele
De olhar perdido na
estante recheada
Recorda a vizinha do
segundo esquerdo
Falecida na semana
passada
Senhora de oitenta e
quatro anos
Bibliotecária quando da
sua vida activa
E o que dizer da dona
Guilhermina
Tudo
Nada
Talvez pouco quando se nasce
E muita coisa quando se
está de partida
Coitada da senhora
Boa piquena
Ainda virgem (apenas de
signo)
Muito educada
Blá-blá-blá
E finou-se numa noite de
Dezembro
Sem electricidade
Sem nada
Com tudo
Coitada da senhora
E quando perguntei ao
sobrinho
Morreu de quê a dona
Guilhermina
Ele
Triste
Respondeu-me que…
Olhe
Morreu de tristeza.
E um poeta como eu
Que de nada percebe de certidões
de óbito
Ou de metástases
Ou de toda essa merda…
Não sabia que se morria
de tristeza.
Andando que se faz tarde.
Ele foi tomar o duche do
fim de tarde
Vestiu a farda
Calçou as pesadíssimas botas
militares
E zumba
Portão fora
Patrão dentro
E vai ele rumo à cidade,
Desce a calçada
Apressadamente
Ao fundo da calçada
Vira à direita
Marcha
E enquanto marchava
Ouvia os piropos dos
gajos que procuravam sexo
Diziam que bem pago
E com medo
Não o medo de AL Berto
Mas com o medo de ser
enrabado
A sangue-frio
E no final receber cinco mil
escudos
(diziam que o broche era
mais caro)
Desatava a correr
E só parava numa esplanada
E já dentro dela
A menina
A menina escondia-o na
despensa;
Quase com o coração a
saltar-lhe pelas goelas
Suspirava baixinho
Foda-se. Foda-se.
(onde vim eu estacionar)
E eu
E eu habituei-me a
estacionar em muitos locais da cidade
Gostava do perigo
E claro
Conversar com o medo.
Engoliu o penúltimo silêncio
de fumo
E pensou
E talvez não tenha pensando
em nada
Porque enquanto contava
os silêncios de fumo que lhe restavam
Perdeu-se nos pensamentos
Perdeu-se na cidade
Abre um pequeno livro com
o olhar
Começa a ouvir A
Tabacaria
A tabacaria do Senhor
Álvaro de Campos
Na voz do grande Mário Viegas
Parou
Mexeu os cotovelos
Colocou o que restava do
cigarro
No cinzeiro de madeira
Porque o cinzeiro de
prata já o tinha vendido
Algures na feira da Ladra
Onde tudo se compra
Onde tudo se vende
(e um dia quase que me
vendi a uma velhinha)
E depois de fazer o
funeral ao que restava do cigarro
Pensou então
Pensou que o medo está
para o poeta
Tal como a chuva está
para o magala;
É tudo uma questão de
psicologia.
(a chuva o frio o medo o
caralho que te foda e é tudo uma questão de psicologia)
A roupa que o diga (quando
chove) (grandes filhos da puta)
Levanta-se da secretária
Vai até à janela
Abre-a cuidadosamente
Com medo
Com o medo
Com medo que o mar lhe
entrasse pela janela
(este parvalhão não
percebe que o mar nunca chegará ao terceiro andar)
E percebe que já é noite
Que alguém roubou todas
as estrelas da noite
Que no Tejo um petroleiro
apeado
Esperava que regressasse
a madrugada para se abraçar a terra.
E lá está ela
Suspensa na parede
Pregada a uma cruz de luz
Cinzenta
Verde
Laranja
STOP
E morreu de quê a menina
Guilhermina
Entre a voz do Mário
Viegas a declamar a Tabacaria
E o silêncio do segundo
esquerdo
É perfeitamente audível
Morreu de tristeza
Queria que ela morresse
de quê
Sou parvalhão
Calmeirão,
(TRISTEZA)
O senhor oficial
Bem fardado
Diga-se
Com uma mão no volante
A outra
E com a outra entre a
manete de velocidades
E o pénis do rapaz que
seguia a seu lado
Tentava engatá-lo com
promessas de falso oiro
E meia-dúzia de camelos
Ele cerrou as pernas
E enquanto a cidade se
perdia em direcção Santa Apolónia
O carro parou
O gajo saiu
apressadamente
Deixou cair a mochila no
pavimento
E só parou dentro da
estação.
(há coisas do caralho
Pensou)
E continuando com a
E lá está ela
Suspensa na parede
Pregada a uma cruz de luz
Cinzenta
Verde
Laranja
Encarnada
Encarnada sim senhor que
eu bem vi com estes que a terra há-de comer
Pensou novamente no medo
Agora no medo de AL Berto
E não sabia se o pior
medo da sua vida era que o mar lhe entrasse pela janela
Ou
Ou a doce donzela
suspensa na parede do escritório
(Pregada a uma cruz de
luz
Cinzenta
Verde
Laranja
Encarnada)
Tanto faz…
Tanto faz quando a noite
é uma merda
Com estrelas
Sem estrelas
Com palavras
Sem palavras
Com lua
Sem lua
Com sol
Com sol
Quando o rabo está em
direcção a Norte…
E um lindo crucifixo nos
olha;
(E lá está ela
Suspensa na parede
Pregada a uma cruz de luz
Cinzenta
Verde
Laranja
Encarnada).
Encarnada de mini-saia e
de cigarro ao canto da boca.
Alijó, 12/11/2022
Francisco Luís Fontinha
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