Sejamos francos
Quase tudo morre
Morrem as árvores e os
pássaros
E os filhos dos pássaros
E os filhos das árvores
Morrem os barcos
Os filhos dos barcos
E os passageiros dos
barcos
Morrem as estrelas
E um dia morrerá a Terra
e a Lua
Morre a noite
Quando acorda o dia
E morre o dia
Quando acorda a noite
Morrem os rios
E as montanhas
Morrem os corpos
E há corpos vivos que
estão mortos
Um dia morrerá o sol
E se a lua morrer
Não terás luar
E se o sol morrer
Não terás o pôr-do-sol
E o que te importa olhar
o mar
Se não há o pôr-do-sol?
Morrem as casas
As ruas e as cidades
Morrem os mendigos e a
pobreza
Quando morrem os pobres
Morreu o portão de
entrada
Do quintal de Luanda
Quando me sentava à
espera do avô Domingos
Depois de uma longa tarde
a passear os machimbombos com um cordel
Pelas ruas de Luanda
Morreram as mangueiras do
quintal
Morreram as mangas
Morreu o avô Domingos
E os machimbombos do avô
Domingos
Morreram os calções e as
sandálias
E o triciclo
Morreu o chapelhudo
Depois
Morreram os papagaios em
papel
E a construtora dos
papagaios em papel
Morreu a escola junto ao
jardim
(assassinada)
Morreu o antigo campo de
futebol
E que hoje é o mercado
Morreu o velho
Maximiniano
Que com um carro de mão
Transportava as bancas em
madeira para aluguer nos dias de feira
Morreu o Dispensário
A menina Maria e a Tuberculose
(felizmente que a tuberculose
morreu)
Morreram quase todos os
gajos
Que fumavam charros nas
escadas do Dispensário
Antes do avô Domingos
Morreu o avô Francisco
Depois a avó Valentina
A avó Silvina
O tio Augusto
Primos
Tios
Primos e tios e tias e primas
Morreram
Morreu o café Luso e a
cozinha do café Luso
E os charros que se
fumavam na cozinha do café Luso
E alguns dos gajos que formavam
charros na cozinha do café Luso
Morreu o primeiro Oásis e
hoje vendem lá comida de plástico
Morreu a peixaria que
habitava entre o Oásis e a Ribadouro
Morreu o café da Paz
E as janelas do café da
Paz
Morreram os amigos
Os que fumavam
Os que bebiam
Os que fumavam e bebiam
Os que nem fumavam nem
bebiam
Um dia
Começou a morrer o cabelo
do meu pai
Depois e aos poucos
Toda a parte direita da
cara e o couro cabeludo
Morriam
Caíam camo caem as folhas
no Outono
Por fim
Morreu o meu pai
Ao outro dia
Começou a morrer o cabelo
da minha mãe
(dona Arminda, quantos
cigarros fuma por dia? – nenhum, Doutora Luísa, nunca fumei!)
- O seu filho tem de
deixar de fumar
Não deixei
E também a minha mãe
Morreu
Morreu o barco que me
trouxe de Luanda
Morreu a carruagem da CP
que me trouxe de Lisboa para o Porto
E do Porto para o Pinhão
Morreu o carro que me
trouxe do Pinhão para Alijó
E o motorista do carro
que me trouxe do Pinhão para Alijó
Morre o silêncio
O beijo
Morrem os lábios onde
brincam os beijos
Morrem os olhos que nos
iluminam
E a luz que ofusca os
olhos
Morre a manhã
E o desejo da manhã
E a manhã em desejo
Morre o abraço
O uísque
E o bagaço
Morre a paixão
Morre o amor
O marido perde a companheira
A companheira perde o
amante
O filho perde o pai
O pai perde o filho
Tudo perde
Tudo morre
Morre a lareira quando
deixa de ter lenha
E morre a lenha
Quando a lareira acorda
de mau humor
- E a saudade, meu filho?
O que tem a saudade, mãe?
A saudade morre, mãe?
- A saudade, meu querido,
a saudade nunca morre
- E os poemas, meu filho?
O que têm os poemas, pai?
Os poemas morrem?
- Os poemas, meu querido,
os poemas nunca morrem
Morreu o banco de jardim
Que estava estacionado em
frente aos Correios
À noite
Sentava-se lá uma linda mulher
De livro na mão
Livro que eu já tinha
lido
E quando percebi
Já tinha a minha mão no
livro dela
E ela tinha a mão na
minha mão
Falávamos de literatura,
poesia, arte e música
Até que de madrugada
A mãe dela
Também já morta como o
banco de jardim
Vinha-a buscar
E eu furioso
Pronto a assassinar o
resto da noite
Para que brevemente fosse
dia
Durante a tarde
Escrevíamos em conjunto
poesia
Morreu o banco de jardim
Morreu a mãe da linda
mulher
A linda mulher não sei se
morreu
Mas o livro ainda deve
andar por qualquer uma das prateleiras da minha estante
Sejamos francos
Quase tudo morre.
Alijó, 06/12/2022
Francisco Luís Fontinha