sábado, 8 de outubro de 2022

Cinzas de crocodilo

 Eramos muitos. Eramos loucos. Amávamos muito… hoje, somos pequenos pedacinhos de tecido suspensos nas nuvens da manhã, dos livros às cores garridas abraçadas ao branco tela, de um banco de jardim até aos longínquos passeios junto ao mar, e acabávamos sempre a noite a falar de Dostoevsky, o que provavelmente seria melhor do que falar de plantas ainda não nascidas,

A lareira erguia-se na cozinha desarrumada e aos poucos, poemas, desenhos, começaram a alimentar as lágrimas da mesma, ele, sorria de tanta felicidade; finalmente tudo o que saía dele começava a fazer sentido,

Sorriam as cinzas à janela do silêncio,

Eramos muitos,

E não sabíamos que das grandes árvores do destino, que o acompanham desde menino, um dia transportassem os cadáveres que hoje habitam nas manhãs de sábado, nas manhãs de segunda-feira, nas manhãs de quinta-feira, e mesmo assim, ainda existem algumas limalhas de aço que deixaram de responder aos apelos de uma nova vida,

Começamos então a semear as cinzas sobejantes nas tardes junto ao mar,

Eramos muitos. Somos quase nenhuns,

Amávamos muito… hoje, pertencemos aos esquisitos, não alimentados pela escura noite que nos abraça em cada pequeno silêncio, e as lâminas do desejo, hoje, são apenas lâminas do desejo. Nos livros, encontrávamos as margens pequeninas de um rio, rio que hoje é apenas saudade, e dos livros, sentíamos as poucas alegrias que a madrugada nos proporcionava,

Agora mesmo,

Sentimos o corpo desfalecer, somos instantes dentro de um túnel infinitamente louco e apaixonado, e quanto às cinzas dos poemas, dos desenhos, dos tristes silêncios que apenas a noite nos trazia, hoje parecem pontos de luz em busca da eternidade,

Movimentam-se dentro de nós,

Todas as estrelas do universo, e de infinito em infinito, há sempre uma recta à nossa espera, está cansada, grávida e infeliz,

O menino dos calções cresceu, vive dentro dos livros de Dostoevsky, o menino dos calções deixou de passear junto ao mar, porque o mar, como outros mares, morreram junto aos rochedos da infância,

Uma lágrima solta-se do sorriso do sol, então porque crescem as acácias neste jardim despovoado de meninos?

E choram?

Como choram todas as manhãs as minhas fotografias ao saberem que os poemas, os desenhos,

Cinzas.

E não sabíamos que um dia regressaria o sono, e não sabíamos que um dia se esconderia o sol e a lua, mas sabíamos que das cinzas dos poemas e dos desenhos… eramos muitos, eramos loucos, e amávamos muito, e não sabíamos que de um lindo dia de Primavera nasceriam as pedras cinzentas onde nos sentamos ao acordar.

E choram?

São cinzas, menino…

Cinzas das suas estórias, porque acabávamos sempre a falar de Dostoevsky, como sempre, sentados num banco de jardim, à espera de que a noite nos levasse,

E levou-os,

Hoje, somos instantes, somos poucos à mesa, e desconhecemos se o infinito existe. Hoje já não somos os meninos que passeavam junto ao mar, porque o mar morreu, porque o mar sou eu, porque o mar já não é o mar,

Então, decidimos subir a montanha,

Das cinzas, os beijos,

Nas cinzas, as lágrimas do poeta,

Cinzas, menino, cinzas.

E mesmo assim, sabíamos que as gaivotas, como todos nós, eram apenas instantes dentro de um cubo de vido com fotografia para o Outono; cinzas, menino. Cinzas de crocodilo…

Até que o mar voou da pequena alcofa levando o pequeno sorriso.

Cinzas, menino.

Cinzas de crocodilo.

 

 

 

Alijó, 08/10/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Não te esqueças de acordar de manhã

 

Não te esqueças de acordar,

E se não acordares pela manhã,

Não entres em pânico,

Podes estar morto,

Podes estar a sonhar,

 

Mas tenta sempre acordar,

Mesmo que estejas morto,

Ou esquecido de acordar…

Levanta-te,

Ergue-te,

 

E compra um ramo de flores,

Encarnadas, se possível, oferece-as a quem amas…

Veste o teu melhor fato,

Se fores mulher, pinta os lábios,

Mas nunca te esqueças de acordar,

 

Acordar pela manhã,

E se acordares morto,

Não te lamentes,

Não fiques triste,

Porque há mortos felizes,

 

Porque há mortos contentes,

Não te esqueças de acordar,

Desfazer a barba,

O duche,

O cigarro e o café… e então poderás partir.

 

 

 

Alijó, 07/10/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Final de tarde

 Invento-te

Nas sílabas silenciadas da insónia,

Invento-te

Nos poemas que escrevo,

Invento-te

Nas estrelas que se abraçam aos meus olhos…

E são apenas pontos de luz,

E são apenas estrelas.

 

Invento-te

Nas palavras que semeio sobre o mar,

Invento-te

Em todas as marés,

Em todos os pôr-do-sol…

Invento-te

Em cada final de tarde

Junto à baía,

 

Invento-te

Quando o sono poisa nos meus lábios…

E troco os beijos e todos os desejos

Pela luz que entra na minha biblioteca…

E se senta sobre a secretária,

Invento-te

Nas fotografias que dormem pertinho de mim

E percebo que são fantasmas,

 

Invenções,

Porque te invento,

Porque te desenho

E escrevo,

E enquanto um pedacinho de mel,

Ou um pequeno silêncio de mar…

Vem a mim,

E me questiona porque te invento, confesso; não sei responder.

 

 

Alijó, 6/10/2022

Francisco Luís Fontinha

Pedacinho de desejo

 

Se eu lançar

Um grama do teu desejo

Em direcção à lua,

À velocidade da luz,

Demoraria cerca de um vírgula vinte e cinco segundos,

 

Imagina que esse grama do teu desejo

Era lançado contra o sol,

À velocidade da luz…

Esse pedacinho de desejo

Demoraria cerca de oito vírgula três minutos,

 

Entre estar sentado

Na lua,

Ou dormir no sol,

Escolho certamente a lua…

Porque o grama do teu desejo

 

Chegará a mim mais rapidamente…

E se estiveres nos meus braços,

Quanto demoraria a chegar a mim um grama do teu desejo?

Instantâneo?

Ou assim, assim…

 

Ou nem por isso…

Agora imagina que eu queria quantificar

O silêncio do teu olhar,

Ou a área dos teus beijos,

Ou… deixa estar; nunca o conseguirei!

 

 

 

Alijó, 06/10/2022

Francisco Luís Fontinha

O muro do desejo

 

Desenho o beijo

Na sombra fria e escura

Do muro do desejo,

Pergunto-me,

Quanto pesará um beijo…

E ninguém sabe,

Ninguém consegue calcular o peso de um beijo,

Eu não sei,

 

Desconhecendo a massa de um beijo…

Será impossível de calcular o seu peso,

Portanto,

Um beijo poderá pesar muito…

Ou não pesar nada…

Ou nem sequer existir,

Um beijo desenhado,

Quase sempre, é um beijo desejado,

 

Mas haverá beijos que não são desejados?

E desenhados?

Conseguem desenhar um beijo?

Como se escreve um beijo?

E se a sombra fria e escura

Do muro do desejo…

Não existir?

Não sei…

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 06/10/2022

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Iões da saudade

 Percebo que a noite é escura

Quando cada milímetro quadrado da tua pele

Se despede das minhas mãos,

Percebo que a noite é escura

Quando a minha voz se perde na velocidade da luz

E se abraçam,

E se beijam,

O som… e a luz,

 

Percebo que a noite é escura

Quando dos teus lábios fogem os iões da saudade,

Quando um beijo se ergue na margem esquerda das tuas coxas…

Quando um pedaço de noite é apenas um pedaço de noite,

Percebo que a noite é escura

Quando semeio as minhas palavras sobre o teu peito,

E nele, desenho as imagens do desejo,

 

Percebo que a noite é escura

Quando este poema poisar sobre o teu cabelo,

Quando a cidade dorme,

Percebo que a noite é escura

Quando as janelas do teu olhar se abrem…

E as equações do sono,

São pequeninos silêncios

Na lua… também ela, tal como a noite, escura.

 

 

Alijó, 05/10/2022

Francisco Luís Fontinha

Quando a noite é escura

 Quando a noite é escura

E procuro o teu corpo,

Se me aproximo,

Encontro-te,

Se me afasto,

Perco-te,

 

Quando a noite é escura

E apenas sinto o teu perfume,

Mapeio-te,

Como se fosses uma rocha…

Como se fosses um pedacinho do poema,

Junto à lareira,

 

Quando a noite é escura

E ausentas-te do silêncio,

E te perco em cada fotão de desejo,

Quando a noite é escura,

Quando a lua dorme,

Quando somos apenas gotículas de suor

 

Suspensas no sonho,

Quando a noite é escura

E pertences a todos os mares

E a todas as montanhas…

Quando a noite é escura

E apenas os teus lábios brincam como brincam todas as sílabas em cio…

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 05/10/2022