Carlota acordou triste. Enquanto
se passeava nos lençóis nocturnos da insónia, e sempre que antes de se deitar
tinha a oportunidade de olhar-se no espelho da saudade, quase nunca acordava de
manhã ou tal como hoje, acordava embrulhada numa finíssima lâmina de saudade.
Descera ao rio durante a
noite em pequenos voos rasantes, os barcos sombreados que o luar tinha
desenhado sobre o imenso cais onde donzelas de charme dançavam a despedida das
naus, aos poucos, começavam a zarpar em direcção à morte, tratando-se de barcos
carregados pela idade, dir-se-ia que o fogo seria a melhor forma de desaparecer
neste labirinto ténue de tristeza, caso Carlota tivesse aberto a janela para a
solidão, todos estes barcos seriam salvos pelas rezas e mesinhas que na aldeia
habitam junto às árvores.
Os cigarros chegavam e
sobravam para a última viagem da tinta sobre a tela enlameada de lágrimas e, do
outro lado do rio, junto à cabana, Carlota adivinhava um fim de tarde
mergulhada nos braços de Rita, que sempre que podia, vinha à aldeia para estar
junto daquela que conseguia rezar aos pássaros antes de estes poisarem na tela
e adormecerem como adormecem as crianças no travesseiro da inocência. Rita percebia
que aos poucos a tela lacrimar de Carlota se transformaria num negro enredo que
apenas um pincel esquecido no atelier sabia transformar em palavras.
A janela para a solidão. Todos
estes barcos seriam salvos pelas rezas e mesinhas que na aldeia habitam junto
às árvores e caso um dia Rita trouxesse na pele húmida da manhã as pequenas gotículas
do desejo, na aldeia todos seriam coniventes dos doirados beijos entre dois
silenciados corpos, enquanto no atelier, uma pequena dança avançava para os
lábios do medo, que depois da morte, argamassava os ossos na escuridão cansada
das grandes tempestades de saliva, depois, entre as coxas da madrugada, a pedra
envenenada desaparecia no rio.
Amas-me, Rita?
Ouvíamos as danças das
coxas quando nos teus lábios se percebia que o poema aos poucos mergulhava
entre os parenteses da insónia, quando sobre nós, entre lágrimas de silêncio,
as vozes nocturnas entranhavam-se em nós, como se entranham na paisagem do
loiro trigo as sílabas amorfas da loucura;
Desejo-te muito, Carlota…
Sempre que há luar na tua
mão, sempre que tenho sobre o peito a invisível madrugada dos pinceis que
apenas a tela absorve entre um círculo com olhos verdes descendo a Mutamba, o
trigo percebe que em breve será poeira como o são todos os ossos das roseiras
em flor.
Não sabíamos que o desejo
era uma nuvem de fome em direcção às esplanadas do Baleizão, que à noite,
recebia trapezistas, malabaristas e palhaços de vidro.
Porque me amas, Rita? Quando
dentro de ti apenas existe um pedacinho de lua com sabor a chocolate, quando
dentro de ti, eu, sou a princesa das noites voláteis sem perceber que já não
sou eu, sem perceber que deixei de existir na noite dos tristes triângulos das luzes
e cores, que sempre que nos beijávamos no Mussulo, se sentavam na fina areia do
pôr-do-sol.
Não vens, Rita?
E sempre que Rita não
descia à aldeia e se deitava junto à tristeza de Carlota, esta, acordava embrulhada
em tristeza e lágrimas de incenso, que à medida que a manhã avançava em
direcção ao bairro Madame Berman era absorvida pelo cheiro da terra queimada;
Assim dançávamos dentro
dos pequenos charcos que circulavam as velhas sanzalas e que de vez em quando,
junto à noite, ouviam-se os roncos dos velhos carros militares que pernoitavam
no quarte do Grafanil.
Um dia, meu amor, todas
as pétalas serão tuas e as minhas telas, apenas elas, servirão de poiso às tuas
lágrimas.
Hoje acordei triste. Enquanto
passeava nos lençóis nocturnos da insónia percebi que nas tuas mãos, doce Rita,
brincam as palavras mais belas que só o teu corpo sabe declamar enquanto junto
a mim oiço os mabecos em cio em alegres despedidas.
O Mussulo era um encanto quando
sabíamos que tudo era apenas uma imagem desenhada num espelho que alguém
apelidou de saudade, e eu, chamo de orgasmo.
Alijó, 16/08/2022
Francisco Luís Fontinha