quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Rochedos da infância


O vigilante nocturno olha-me e alicerça-se aos meus braços,
sinto-lhe o esqueleto enferrujado a caminhar no meu peito,
ofegante,
alimenta-se dos meus velhos ossos com odor a madrugada sem luar,
peço-lhe um desejo...
e... e nada posso desejar,
o vigilante nocturno é como uma âncora de luz sobre as minhas pálpebras envergonhadas,
que as flores seduz...
e aos jardins oferece poemas,
e... e palavras de amar,
o amor enfurece as árvores sem folhas,
nuas como as gaivotas ao entardecer...

Depois acorda o silêncio vestido de cidade,
e eu sem saber o que fazer,
os comboios saltitam dentro dos carris desalinhados,
os comboios parecem corpos a arder...
há cinzas laminadas de sangue no sonífero poético,
alucinações desorganizadas em grande multidão,
uns que choram,
e outros... e outros que choram por prazer,
e sem perceberem...
há uma placa de zinco onde habita uma ponte,
nunca conheci o seu nome,
nunca vi um sorriso nas suas treliças,

Têm fome as estrelas de papel que brincam no tecto da minha aldeia,
lêem pedaços de nada e alguns cubos de sombra,
escrevem na incandescente memória o álcool sobejante da noite passada...
ressuscitam os outros vigilantes e demais arruaceiros sem gabardina,
e o meu corpo de aço... tomba sobre o ombro de um transeunte desconhecido,
a cidade é uma seara sem espigueiros,
desalojadas enxadas em luta conta a pobreza...
têm fome as estrelas e os planetas,
mendigos travestis correndo montanha abaixo,
e suicidam-se nos rochedos da infância...
triste, triste esta vontade de escrever...
sabendo que nem às pedras pertenço!




Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 5 de Novembro de 2014

terça-feira, 4 de novembro de 2014

As cartas não lidas


Este machimbombo rabugento subindo a calçada,
cá dentro, algumas insignificantes malas sem destino,
uma guitarra,
e um chapéu de palha...
partilhamos os abraços nos cadeirões ensonados,
algures... ouvem-se os pergaminhos nomes das cidades perdidas,
faltam-me os cigarros e os livros que deixei no apeadeiro da solidão,
um lenço de papel chega-me para escrever qualquer coisa parva,
como todas as coisas parvas que faço...
evito abrir os olhos porque do outro lado da rua, uma roda dentada,
sobrevoa as árvores cansadas do Outono,
e este machimbombo que não anda...

E este relógio que não pára...
sufocam-me as tuas palavras de viajante que sobejaram de uma carta não lida,
nunca leio as cartas que me escrevem...
também... deixei de escrever cartas,
porque são apenas pedaços de papel,
com... com falsas sílabas,
e prometidas aventuras,
amo apaixonadamente a noite,
a noite travestida de cinzento alento...
amo as pedras acabadas de tomar banho,
quando em finais de tarde...
acorda o moliceiro... e o meu corpo se transforma em machimbombo rabugento.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 4 de Novembro de 2014

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Tempestade


Pindéricos esqueletos sobrevoando o pólen embriagado
marinheiros raquíticos encostados ao mar salgado
esta vida de sangue entranhada nas mandíbulas da cidade
este vento envergonhado que se enforca nos meus abraços
os sinos da ferrugem engatados numa ruela quadriculada
a tarde que se afunda
e mata
nos estilhaços de uma espingarda
as mulheres procurando carícias debaixo das palmeiras
um poeta encardido
sentado numa cadeira...
e ninguém... e ninguém olha a ponte de nylon com cabeça de xisto,

O poeta enlouquece
e transforma-se em pedacinho de poeira
não escreve porque lhe falta a esplanada de Belém...
cerra hermeticamente os olhos de areia
e... e ninguém...
e ninguém olha a ponte de nylon
que o rio embala nas noites de neblina
os pindéricos esqueletos consumindo vodka falsificado...
os apitos de um drogado
quando os carris de aço desaguam em Cais do Sodré
e o magala desgovernado
tomba... tomba suavemente no pavimento florido,

O céu em chamas dançando nas espinhas do almoço
o guardanapo esbranquiçado poisado sobre o clitóris da esperança
gemem as sílabas nas ruínas que a tua voz devastou
canso-me das marés
e desta cidade sem escala
não encontro o fim do sacrifício
que o poema me obriga...
cambalhotas e palhaços encerrados numa tenda clandestina...
solto-me
e grito
e saltito...
como o encharcado luar no centro da tempestade...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 3 de Novembro de 2014

Poemas invisíveis


O silêncio me embala nesta jangada de dor
uma espingarda dispara
contra o meu peito
e a bala
não consegue matar-me
o jorro de palavras soltam-se dos meus lábios
prisioneiros
das tardes junto à lareira,

A ribeira
lá longe
camuflada pelas gaivotas sem nome
os barcos se afundam nas tuas pálpebras de enxofre
e os meus dedos se perdem na ardósia da noite...
o silêncio... de dor
uma espingarda em papel
tomba no chão ácido do cansaço,

Finalmente
todas as luzes do teu olhar se evaporam
como um vulcão selvagem
nos seios de uma montanha
há dentro da tua sombra
as cintilações do desejo...
e nas tuas coxas de diamante
perdem-se todos os poemas invisíveis da madrugada.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 3 de Novembro de 2014

domingo, 2 de novembro de 2014

Caverna espelhada


Os corpos incandescentes vivem na caverna espelhada
o amor cessa
porque um olhar se acorrenta às arcadas nocturnas da insónia
os corpos transparentes voam
e não regressam mais...

O difícil é partir
sem regressar
esconder-se nos claustros invisíveis do amanhecer
deixar sobre a mesa-de-cabeceira um simples bilhete...
parto e nunca mais regressarei,

Regressar porquê?
se ninguém notará a minha ausência...!
o amor cessa
e das palavras regressarão os abismos de um Oceano habitado por cadáveres
e em cada cadáver uma flor na lapela...

Os corpos...
fogem das ruas inanimadas com odor a Primavera
o amor cessa
como cessaram todas as andorinhas
e todas as gaivotas que conheci...

A caverna espelhada transpira solidão e embriaguez alicerçada aos barcos de papel
o menino de calções desenha nas sombras do entardecer
corações e triângulos que um adulto qualquer vai fotografar
e mais tarde...
queimar na fogueira do desejo.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 2 de Novembro de 2014

Cubo envidraçado...


Não sabia o que era a saudade
até que os teus braços desfaleceram...
acreditava que nesta maldita cidade
recheada de cães vadios e palavras amorfas
encontraria os teus olhos de alegria
procurei, procurei...
e mal eu sabia
que deixaste de ter olhos
naquela tarde sangrenta
vi no espelho doente de uma qualquer loja
o teu rosto deformado
e as tuas mãos trémulas dançando no vento em alvoroço,
o amor é uma “merda”
a dor
o sofrimento
e a doença...
não sabia o que era a saudade
não sabia o significado de abraço...
segurava-me aos teus cabelos
e sorria como me tinhas ensinado
o coração batia
o corpo... o corpo de mendigo sonolento
se escondia
como os pássaros dentro de um cubo envidraçado...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 2 de Novembro de 2014

sábado, 1 de novembro de 2014

Estes versos e ossos


Tristes versos
estes
barcos esfarrapados que se afundam nos teus olhos
carcaças de ossos
gente aos molhos...
tristes versos dos mendigos sem solução
habitantes de uma cidade em alvoroço
dia sem almoço
carcaças
ventos e marés em confusão
estes
versos
sem nome
estes
estes barcos enferrujados lapidando calçadas e transversais loucas
mulheres cansadas
mulheres acariciando a madrugada
tristes
versos
os corpos em migalhas
em direcção ao rio da amargura
tristes
tristes tardes de literatura
que alimentam os mendigos sem solução
estes
versos
e ossos
este vazio dentro do meu peito incendiado
embriagados livros cambaleando na atmosfera
os círculos do coração... em espera
estes nomes
versos
e crianças...
procurando as árvores da infância
tanto medo... meu Deus...
medo da esperança.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 1 de Novembro de 2014