|
foto de: A&M ART and Photos
|
Não tínhamos sabão para lavarmos os pecados
cometidos durante a noite, da torneira do lavatório, um objecto
quase em putrefacção devido ao estado de abandono a que foi
submetido durante os últimos anos de permanência do habitante
caquéctico a que dizem ser meu tio, apenas um fino fio de ferrugem,
abria-a, fechava-a, e na esperança que de pequeno fio se
transformasse em grande novelo..., mas... nada, sempre pingos de
ferrugem, e mais nada,
Vida desgraçada, dizem alguns de vocês,
Vida alegre e de felicidade, acho-o eu, porque feliz
feliz é aquele que não sabe o que diz, como eu, e voltando ao
sabão, em falta dele temos sempre a fé para nos redimirmos, e
claro, começamos a rezar, rezamos tanto que quando terminamos...
tinham passado quase trinta e cinco dias, sem comer, sem beber, sem
beijos, sem abraços... apenas rezávamos e de vez em quando...
Vida desgraçada, dizem alguns de vocês,
Olhávamos a torre da velha Igreja e sentíamos o
vento baloiçar nos corpos nossos caídos no soalho da solidão,
dizias-me que
Amanhã tudo será melhor,
E hoje, que é o teu amanhã, não tudo melhor,
mas... da torneira do lavatório apenas um pequeno fio de ferrugem e
sabão, não sabão para lavarmos os pecados cometidos durante a
última noite, perguntei à ferrugem se sabia quando tínhamos água
Que
Não o sei, nada percebo disso e apenas respondo ao
senhor seu tio, e eu respondia-lhe que
O senhor meu tio foi-se, esfumou-se... voou enquanto
dormíamos... como dois lençóis embebidos em sémen e gemidos
roucos dos cigarros acabados de fumar,
Que, ainda fumas?
Que
Não o sei, não o sei..., Amanhã tudo será
melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã
tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será
melhor, Amanhã tudo será melhor, Amanhã tudo será melhor... que
Não, deixei de fumar e pecar,
Não preciso de sabão, não preciso da água do
lavatório nem dos lençóis embebidos em sémen e velhos gemidos, o
senhor meu tio?
Foi-se,
Que..., que bicho mordeu ao seu namorado?
Saudades, apenas,
Ciumes?
Da
Da vida desgraçada, dizem alguns de vocês, ou...
Ou da noite em que tínhamos a certeza que nunca
mais terminaria, perguntei à ferrugem, sentei-me na sanita e
pasmei-me em perceber que dentro de nossa casa habitava uma comandita
de trombudos deambulantes clandestinos pássaros que nos habituamos a
apelidar de ferrugem e de ferrugem
O quê?
E de ferrugem nada tinham, sempre asseados, sempre
penteados, sempre..., APRUMADOS,
Não tínhamos nada, parecíamos dois voyagers em
busca dos caminhos perdidos, perguntava-lhe se ainda se recordava da
tarde quando caiu sobre nós uma gaivota encharcada e com pequenos
pedaços de
Ferrugem?
Lama, madeira da Índia e tílias falidas depois da
tempestade lhes derrubar todo o telhado em zinco, a palhota a
descoberto destruiu os poucos tarecos que sobraram do regresso a
casa, e num caixote semelhante a uma pequena caixa de sapatos
conseguíamos meter o que tínhamos de tão pouco o ser...
Algumas da cabras deixámos-las no pasto, lá
ficaram, por lá ainda devem andar, quantos às vacas, essas, já
devem ter morrido, passou tanto tempo meu querido filho
Tempo demais mãe, tempo é muito e às vezes é tão
pouco,
A não ser que alguém nos empreste uma barra de
sabão e um alguidar com água limpa, talvez a vizinha do quarto
esquerdo
Essa não, essa não... tem a mania que é rica...
todo cheia de coisas, não, essa não,
Então esperamos pelo regresso do barco que à quase
quarenta e dois anos ficou de vir, e ainda não veio, e quem nos
garante que ainda exista?
Ninguém, ninguém...
Tempo demais mãe, tempo é muito e às vezes é tão
pouco, não tínhamos sabão para lavarmos os pecados cometidos
durante a noite, da torneira do lavatório, um objecto quase em
putrefacção devido ao estado de abandono a que foi submetido
durante os últimos anos de permanência do,
Do VELHO?
Do minguante espelho com lábios rosados e seios de
neblina, hoje sabemos que tudo foi uma mentira, mas ontem
Amanhã tudo melhor, meu filho, tudo melhor...
E não melhor, e não melhor, porque a ferrugem
nunca cessou de crescer em nós, porque o lavatório ainda hoje chora
as lágrimas negras das noites frias de Inverno, porque
Do VELHO?
Porque o VELHO... o VELHO era em aço laminado... a
quente, a quente.
(não revisto – ficção)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 29 de Dezembro de 2013