quinta-feira, 27 de junho de 2013

São nove e qualquer coisa...

foto de : A&M ART and Photos

São... oiço-a no fino pano de espuma, que nos separa, oiço-a do esconderijo com folhas de azedume e janelas de neblina
São nove e qualquer coisa...
Antes das dez, presumo eu, nunca tive um relógio, não por difíceis condições económicas, mas porque sempre achei ser um utensílio, Objecto? Quase, recordo-o agora
(Objecto quase – José Saramago)
Desnecessário, pergunto-me para que me serve um relógio se eu nunca, nunca lhe obedecia, ou minto, fui um servo escravo dele, mas hoje, hoje não o sou, deixei de o usar, tenho-o poisado sobre a cómoda, passo por ele, logo de manhã, indiferente, sublime a luminosidade que consigo observar-lhe quando a luz incide sobre o mostrador com números brilhantes, a princípio, a princípio fiquei na expectativa se aguentaria viver sem ele, e consegui, e sinto-me feliz, muito feliz...
Claro que minto, caro que o tive e deixei de o usar,
O amor?
Entre dois pontos com coordenadas tridimensionais, algures no espaço, com apenas três coordenadas, e um referencial, percebo, que ele, o amor, vive, respira, habita nos corpos mais lentos da cidade, movimenta-se com dificuldade, é mutante, e raras vezes aparece depois de encerrarmos as luzes dos candeeiros a petróleo espalhados pelos silêncios dela,
Oiço-a
São nove e qualquer coisa...
Ainda não dez, brevemente, depois como uma louca corrida em direcção ao fim do corredor, ele, desaparece pelas sombras submersas nos cobertores dos divãs do amor, as escadas em madeira, barulhentas, rabugentas, doces, elas, as nádegas do relógio de pulso submergido no rio de suor da pele ausente que tu me prometeste, e que nunca
São quase dez,
Nunca cumpriste, nunca, escrever para quê?
(Objecto quase),
Em saltos de prateleira em prateleira, em risos, como os móveis teus cobertos por um velho lençol, deixaste de entrar em mim, deixaste todos os móveis do meu corpo protegidos por um branco pano, ausência de pó, vida medíocre, ausência de oxigénio, sempre com as minhas janelas fechadas como uma cancela em suspenso por dois pilares de cansaço, a embaixada
São nove e qualquer coisa...
Você não é Angolano,
Percebo que não sou, percebo que nunca o fui, percebo que a certidão de nascimento onde consta que nasci em Luanda, lamento informá-lo mas a sua certidão de nascimento é falsa, é falsa, como são falsas a respectiva cédula pessoal, como são falsas as fotografias, como é falso o cartão de vacinas contra a febre amarela
O quê? Qual febre amarela, rapaz... enlouqueceu,
Tudo é falso, eu sou falso, a embaixada
Você não nasceu em Luanda, você é um mentiroso, compulsivo, sou, pois sou, e garanto-lhe que nunca brinquei no Mussulo, e garanto-lhes que nunca vi, juro pela minha honra que nunca vi, não sei o que são, machimbombos, juro que não tenho terra, juro-o...
São quase dez,
Nunca cumpriste, nunca, escrever para quê?
(Objecto quase),
Em saltos de prateleira, dentro de um falso paquete, enganaram-me, disseram-me que nasci num local que não existe, falsos, disseram-me que vim num paquete, lindo, enorme, atraente como as meninas que passeavam junto ao Tejo, e não vim, e descubro que esse paquete nunca existiu, falsos, mentirosos, falsas infâncias, como os jardins da escola
Será que ela existiu?
São quase dez, diz-me ela, oiço-a..., em Portugal continental, e no entanto descubro que toda a minha infância foi uma mentira inventada por um menino que andava de calções e sandálias de couro, sentava-me debaixo das mangueiras e inventava histórias,
E inventou esta história, que nasci, vivi, e vim...
E eu, acreditei,
Como acredito nela que me diz que são quase dez horas, da noite?
(Objecto quase)
E eu, acreditei.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 26 de junho de 2013

As cinco torres de neblina

foto: A&M ART and Photos

Embebida nas drogas sintéticas do desejo
há palavras que brotam em teus alicerçados lábios de amanhecer
como pedaços de papel suspensos de um velho livro de poemas
há uma cadeira vazia onde te sentavas
e deixaram de existir os gemidos gonzos perdidos de ti,

Saboreando eu as ditas embebidas na tua doce boca
ou quando acorda o botão de rosa
e sabes que vem do espelho cinzento o vento que te enlaça
e enrola nos cordões de aço
sobre o rio em delírios nocturnos,

Abres as janelas das cinco torres de neblina
que sobejaram da alegre tempestade de alento
sabes que parti porque sou como as gaivotas
voando de mastro em mastro
em busca de alimento,

Sou
sou um falso carvão filho de um medíocre carvoeiro
que corre as ruelas da cidade numa bicicleta antiquada
não estou habituado a alimentar-me como as pessoas normais
talvez porque eu não seja humano… talvez porque eu sou um normal carvão,

Sem coração
profano
embebida nas drogas sintéticas do desejo
ela a Rainha das madrugadas em poesia
saltando de vez em quando os tristes muros da insónia...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 25 de junho de 2013

A revolta dos lençóis de linho

foto: A&M ART and Photos

Olhos, eu? Não os tenho... são apenas pedaços de xisto vagueando ente os socalcos do Douro e a imaginação invisível do sonho de voar..., uma velha metralhadora dispara sorrisos contra a parede de vento que separa os quintais, um pertence ao palhaço rico, e o outro, como nem podia ser de outra forma, é propriedade do palhaço pobre, quando criança queria ser palhaço, trapezista... ilusionista, qualquer coisa que rimasse com circo, qualquer coisa que me fizesse deslocar de terra em terra, e nunca, nunca ser pertença de nenhuma, não ter terra, não inventar rimas quando vinhas à janela, olhava-te e sorriamos como crianças entrelaçadas nas aranhas dos livros de banda-desenhada, imagina que eu fosse o circo, uma roulote, uma fera indomável, correndo e comendo carne até adormecer,
Imagina-me de bicicleta entre sombras de mangueira e gargalhadas de plátanos, imagina-me, não à janela do primeiro andar, mas... num rés-do-chão sobre rodas,
Imaginava-me prisioneiro a uma corda sem princípio nem fim, eu, um palhaço, um trapezista ou um malabarista engolindo fogo e vomitando pedaços de vidro, imaginava-me acorrentado aos abraços de alguém, que quando chegasse no final da noite,
Estou enjoada,
E eu confortava-a dizendo-lhe que provavelmente era do trapézio, ela olhava-me e sorria
E ente silêncios,
Do trapézio... Parvalhão que não percebe,
Nunca, quando chovia, nunca, quando montávamos a tenda e debaixo dela centenas de crianças, sorrindo, comendo pipocas, gelados, nunca, quando eu no palco travestido de cigana lançava-me às feras, elas diziam que eu
Do trapézio... Parvalhão que não percebe,
Disparam-se sorrisos contra a parede de vento, revoltam-se os lençóis de linho das nossas avós, e ardentemente, faço uma pequena sesta na minha infame roulote, e o melhor local para arquivar determinadas mensagens é sem qualquer dúvida a pasta “LIXO”, e enquanto me esticava no pouco espaço da roulote, olhava-me suspenso no tecto, e percebia que nunca seria eternamente criança, e que um dia a vida artística terminaria, deixaria de ser o trapezista, deixaria de ser o palhaço pobre, deixaria de ser o malabarista... e de to e sempre, deixaria de ser o menino do mar, e perguntar-me-ia
Do trapézio?... Parvalhão que não percebe,
E que não, nunca percebeu, e ainda hoje acredita que os olhos são apenas pedaços de xisto vagueando ente os socalcos do Douro e a imaginação invisível do sonho de voar...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

O gato “Orlando”

foto: A&M ART and Photos

Um círculo de espuma
no centro sombrio de uma tela mergulhada em insónia
junto à fronteira que separa a noite do dia
o mar rasurado misturando-se em lágrimas e pequenos silêncios de papel...
e de um sofá submerso em sonhos pincelados de sal... ouve-se o gato “Orlando” em gemidos de sono,

Ele inventa a madrugada sobre os telhados de Lisboa
e pinta nas manhãs de neblina a paisagem invisível do rio envergonhado
atravessado por uma ponte rabugenta
enferrujada pelo vento das nortadas entre despedidas e desejadas barcaças
derramando a solicitude em palavras abstractas e insignificantes,

O desejo em tua felina pele voando sobre as árvores do Tejo
confunde-te com gaivotas e pernaltas em pétalas de açúcar
barcos apaixonados
e astronautas
e no final do dia dizes-me que no Sábado vais ficar ausente de mim,

Habituei-me às tuas garras sobre o meu peito em papel-cartão
marinheiro tu saboreando sorvetes de chocolate como broches na lapela do mendigo artista
dormindo sobre a calçada e desenhando nos teus tornozelos as equações trigonométricas da paixão
e procurando ângulos no negro quadro separando a parte real da parte imaginária
os números complexos em ti descendo o corpo do círculo de espuma,

Estás nua
geada de sémen em migalhas de areia
correndo esquinas e travessas em madeira
pilares e vigas
e sorriso algum emerge dos teus lábios de cidade adormecida... vadia e prostituta.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Poesia sem Gavetas II – Participação de Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Como será o Outono?

foto: A&M ART and Photos

Fazes sentido depois de rasurada, destruída, tu, uma apenas folha de papel, sem nada a tapar-te o corpo desnudo, de pele flácida, como a madrugada, como o amanhecer, antes de acordarem as palavras, e de te vestires convenientemente para saíres à rua? Pergunto-me
Pergunto-te camuflada dentro das gavetas da minha velha secretária, em alguns pontos dela, o caruncho a procurar-te, e não te encontra, abro-lhe as gavetas, a primeira, a seguir, a última... e tu, tu não estás presente, apenas uma fina poeira...
Fazes sentido viveres em mim? Tu? Folha de papel amarotada, esquecida, às vezes, amachucada e deitada no caixote de rede entrelaçada, claro que não meu querido, claro que não, nunca serás o que eu fui, e nunca foste o que eu serei, depois, depois de partirem as andorinhas, depois caírem todas as folhas das árvores da nossa terra (será que ainda temos terra?), não sei... eu não tenho a certeza de ter uma Pátria única, una, sinto-me a tua folha de papel, rasurada, destruída, amachucada... nas tuas mãos, quando começa a noite e me tocas na face oculta, escondida, como as sombras dos candeeiros de naftalina, procuro-me dentro das tuas gavetas, encontro bugigangas, coisas mais parecendo objectos adquiridos por ti quando visitavas a Feira da Ladra, e nada trazias dentro de ti, e nada existia entre nós, eu, uma simples folha de papel, e tu, uma doce e bela caneta de tinta permanente,
Pergunto-me
Como será o Outono?
Gostava de ser como tu, não me preocupar com as palavras, não me preocupar com a saudade, o amor e a paixão, desistir de ti, ser apenas eu, uma caneta, uma triste caneta, sem letras, tinta, solitária como as janelas viradas para o quintal onde habitam roseiras, cravos e hortelã... o aroma do pericão, e a tranquilidade da tarde quando sinto que tu desististe de mim e te lanças, ao caixote de rede entrelaçada, amachucada, rasurada, triste, branca, branca... como a lua acordada em noites de luar, gostava de ser como tu, não saber ler, escrever, contar, um dois três quatro cem quinhentos, ser um andante na algibeira dos mendigos, e pergunto-me?
Valeria a pena?
Claro que não, claro que sim, não sei, talvez,
Como será o Outono de amanhã?
Talvez, não o sei, e não fazes sentido depois de rasurada, amachucada, depois de amarrotada, feita um bola, lançada à lareira, como fazíamos aos cortinados na casa de Favarrel, depois, depois..., valeria a pena escrever em ti? Não, claro que não..., talvez, amanhã, talvez ontem, talvez nunca, claro, percebo perfeitamente,
Tu, uma simples folha de papel,
Eu, uma triste caneta de tinta permanente...
Não, não quero, não preciso... das tuas flores.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Blogue Cachimbo de Água