foto: A&M ART and Photos
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Fazes sentido depois de rasurada, destruída, tu,
uma apenas folha de papel, sem nada a tapar-te o corpo desnudo, de
pele flácida, como a madrugada, como o amanhecer, antes de acordarem
as palavras, e de te vestires convenientemente para saíres à rua?
Pergunto-me
Pergunto-te camuflada dentro das gavetas da minha
velha secretária, em alguns pontos dela, o caruncho a procurar-te, e
não te encontra, abro-lhe as gavetas, a primeira, a seguir, a
última... e tu, tu não estás presente, apenas uma fina poeira...
Fazes sentido viveres em mim? Tu? Folha de papel
amarotada, esquecida, às vezes, amachucada e deitada no caixote de
rede entrelaçada, claro que não meu querido, claro que não, nunca
serás o que eu fui, e nunca foste o que eu serei, depois, depois de
partirem as andorinhas, depois caírem todas as folhas das árvores
da nossa terra (será que ainda temos terra?), não sei... eu não
tenho a certeza de ter uma Pátria única, una, sinto-me a tua folha
de papel, rasurada, destruída, amachucada... nas tuas mãos, quando
começa a noite e me tocas na face oculta, escondida, como as sombras
dos candeeiros de naftalina, procuro-me dentro das tuas gavetas,
encontro bugigangas, coisas mais parecendo objectos adquiridos por ti
quando visitavas a Feira da Ladra, e nada trazias dentro de ti, e
nada existia entre nós, eu, uma simples folha de papel, e tu, uma
doce e bela caneta de tinta permanente,
Pergunto-me
Como será o Outono?
Gostava de ser como tu, não me preocupar com as
palavras, não me preocupar com a saudade, o amor e a paixão,
desistir de ti, ser apenas eu, uma caneta, uma triste caneta, sem
letras, tinta, solitária como as janelas viradas para o quintal onde
habitam roseiras, cravos e hortelã... o aroma do pericão, e a
tranquilidade da tarde quando sinto que tu desististe de mim e te
lanças, ao caixote de rede entrelaçada, amachucada, rasurada,
triste, branca, branca... como a lua acordada em noites de luar,
gostava de ser como tu, não saber ler, escrever, contar, um dois
três quatro cem quinhentos, ser um andante na algibeira dos
mendigos, e pergunto-me?
Valeria a pena?
Claro que não, claro que sim, não sei, talvez,
Como será o Outono de amanhã?
Talvez, não o sei, e não fazes sentido depois de
rasurada, amachucada, depois de amarrotada, feita um bola, lançada à
lareira, como fazíamos aos cortinados na casa de Favarrel, depois,
depois..., valeria a pena escrever em ti? Não, claro que não...,
talvez, amanhã, talvez ontem, talvez nunca, claro, percebo
perfeitamente,
Tu, uma simples folha de papel,
Eu, uma triste caneta de tinta permanente...
Não, não quero, não preciso... das tuas flores.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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