Percebia-se pelas pálpebras dele, azuis com sabor a
pedacinhos de inocência, que a chuva trazia na algibeira a digestão
fictícia dos carrinhos de choque que da infância deixaram
estacionados junto ao berço de madeira prensada, calculava pelo peso
da noite que não eram mais do que três magras horas da madrugada,
chorava, não dormia, e sentia-se que dentro dele viviam parafusos de
aço com defeito de fabrico, a garantia tinha cessado, as torres
tinham acabado de cair entre os imensos plátanos virgens e os
outros, quaisquer, barcos envelhecidos, doidos varridos, deitados
sobre as tábuas da ignorância, dele, e eras uma criança. doida às
vezes, dócil também, poucas, nenhumas, quaisquer
Vivia-se no fio metálico da navalha e ele tinha
medo dos cobertores com remendos de chapa que a mãe, mecânica,
tinha feito para que pudessem dormir e nada deles saísse durante a
noite, atravessasse os buracos do velho tecido, e pelos partidos
vidros das janelas fossem aterrar no paralelepípedo da rua com
costas de geada, os braços murchavam, e derretiam-se como a manteiga
sólida que o inverno pintava como se fossem pedaços de pedra, e
quando lhe perguntavam
Gostas de cá andar, e ele com rosto de incenso
respondia quase sempre Às vezes, depende, e nunca percebi o que
queria ele dizer com Às vezes, depende
Acordava o dia, retiravam-lhe a fralda de pano
encharcada numa espessa massa amarelada intensamente com um cheiro
horrível, indesejado, que aos poucos ia ocupando cada milímetro
quadrado da casa de Lisboa, um enfadado rés-do-chão meio podre,
meio enraizado no Outono pássaros de luz que vinham do outro lado do
rio, entravam em casa, sentavam-se na mesa da cozinha, e da janela
(Tanta coisa para dizer que cheirava a “merda”)
E da janela sentiam-se os motores com cavalos
cinzentos em lábios de fumo, ouvia-se o rosnar da fera amansada
criança deitada no sofá à espera que lhe trocassem a fralda de
pano por outra fralda de pano, limpa, lavada, e o motor aos tropeções
avançava mar adentro até desaparecer nas velhas cristas das ondas
de espuma que os cigarros embebidos em cerveja emagreciam como
tremoços numa esplanada de Belém, sexta-feira, e nada de novo,
foi-se e não regressou mais
Às tuas, Às minhas, Às nossas,
E não regressou mais,
Chegava ao balcão e pedia incessante e audaz ao
empregado “Destroque-me” esta nota para tirar cigarros, e ela
Não se diz “Destroque-me”, tá ver Francisco,
isso não existe, correctamente é Troque-me esta nota para tirar
cigarros, e eu acreditava mesmo que os ossos de pano que às vezes me
embrulhavam tinham saído de validade há tempo suficiente, só
podia, não encontrava outra explicação para o tão grande
aglomerado de homens e mulheres à porta de minha casa, gritando
(Tanta coisa para dizer que cheirava a “merda”)
Às tuas, Às minhas, Às nossas,
E não regressou mais,
Um enfadado rés-do-chão meio podre, meio enraizado
no Outono pássaros de luz que vinham do outro lado do rio, entravam
em casa, sentavam-se na mesa da cozinha, e da janela, da janela
vinha-nos o medo das coisas como as simples flores encarnadas com
lacinhos de cetim que eu nunca soube como se chamavam e tu, quando eu
chegava a casa, simplesmente deitavas no caixote do lixo e dizias em
voz alta para que eu ouvisse e não esquecesse nunca
Não quero mais esta porcaria, odeio flores
encarnadas com lacinhos de cetim,
E eu,
E ela,
Olhavam-me depois de trocarem-me a fralda de pano,
abria a boca e sorria, sorria quando sabia que da janela vinham as
imagens tricolores com pequenos fios de prata, sorria porque tinha
acabado de beber o saborosíssimo e inconfundível leite materno,
sorria porque
Vivia-se no fio metálico da navalha e ele tinha
medo dos cobertores com remendos de chapa que a mãe, mecânica,
tinha feito para que pudessem dormir e nada deles saísse durante a
noite, atravessasse os buracos do velho tecido, e pelos partidos
vidros das janelas fossem aterrar no paralelepípedo da rua com
costas de geada, os braços murchavam, e derretiam-se como a manteiga
sólida que o inverno pintava como se fossem pedaços de pedra,
Às tuas, Às minhas, Às nossas,
E não regressou mais,
(Tanta coisa para dizer que cheirava a “merda”)
E da janela sentiam-se os motores com cavalos
cinzentos em lábios de fumo.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó