nunca percebi quem foste,
ontem sabia-te perdidamente esquecida numa prateleira lá de casa, na
biblioteca, ou na despensa, talvez na casa de banho, sabia-te
perpendicular ao sol quando o granito envelhecido, de bengala na mão,
descia a montanha, descia vagarosamente até à clareira circular das
nuvens mistas entre o amarelo e o verde garrafa, sobre a mesa a vodka
esperava pela tua chegada, a amada quem foste, ontem, madrugada sem
leme, madrugada da candeia cerrada como os troncos de madeira, à
noitinha, muito, muito devagar, entras na cozinha, acendes a luz do
silêncio, talvez numa das prateleiras da garagem, muito devagar, os
miúdos em calções às voltas com um triciclo enferrujado, triste,
elas, as mangueiras embalsamadas dos primeiros orgasmos inventados
quando do capim se ouviam gemidos e uivos de borboleta, até que a
morte os separe
hoje não, nunca, nunca
percebi quem foste, sabia-te perdidamente esquecida dentro de uma
lata vazia de qualquer conserva que tu conversavas agarrado ao
cigarro indigesto, fumavas-lo sem perceberes que eu existia no quinto
andar esquerdo, com quatro janelas e uma porta de entrada, tinhas
sono, parecias um mono, um vagabundo, sujo, imundo, e, e hoje, quem
foste, como serás hoje em frente ao espelho da pensão Josefina,
velha moribunda, rabugenta, esfomeada,
e nem a morte nos
consegue separar,
ouviste-me? lembras-te
das minhas mãos de insónia? e depois, e depois do sono vaguear
sobre o pénis da cidade, madrugadas, fúrias, beijos, beijos que nem
a morte consegue separar,
desequilibras-te sobre o
arame do desejo
e nem a morte nos
consegue separar,
quando o circo aparece
dentro do esófago, perdão, sarcófago de verga junto à lareira eu
deitado nas tuas pernas, orgias de livros, os meus livros com os teus
livros, eu e tu, nós, as sombras construídas nas azinhagas do ciúme
e nem a morte
separa as orgias
invisíveis dos nossos livros, ouviste-me? lembras-te das minhas mãos
de insónia? e depois, e depois do sono vaguear sobre o pénis da
cidade, madrugadas, fúrias, beijos, beijos que nem a morte consegue
separar, a morte, separa, acabam-se-me as pilhas, e a cidade, a
cidade? qual é a tua cidade meu amor?
nunca percebi quem foste,
ontem sabia-te perdidamente esquecida numa prateleira lá de casa, na
biblioteca, ou na despensa, talvez na casa de banho, sabia-te
perpendicular ao sol quando o granito envelhecido, de bengala na mão,
descia a montanha, descia vagarosamente até à clareira circular das
nuvens mistas entre o amarelo, o castanho, e o eterno azul marinho
quando terça-feira aparece sobre a tua mesa na cozinha, ouves Deus,
ouves Deus a falar dele enamorado, ele, não ele, o outro ele, ela
distraidamente sentada no muro em paixão, os códigos secretos, um
simples olhar
e nem a morte,
um simples olhar na
janela dos sonhos e uma carta esquecida, querida, apaixonadamente
perdida na prateleira, querida Josefina e nem a morte, e as tuas
mãos, e os teus seios no vão de escada da pensão, escadas,
cobertores e espelhos, corrimão de madeira, querida, minha
quinta-feira Josefina das tardes de incenso, perdi-me, sabia-te
esquecida. Perdidamente perdida, os mimos, os nossos livros juntos,
felizes, em orgias nocturnas, fúteis
e nem a morte nos
consegue separar, qual é a tua cidade meu amor? como são as tuas
mãos meu amor? e os barcos meu amor tua boca?
fúteis as margens
métricas das mortalhas, os canalhas, quando as muralhas incendeiam
as faces ocultas dos planetas submersos nas candeias, a boca, língua,
suspensos na genial loucura da geada, o inverno, o frio, o miúdo em
calções à sombra de uma mangueira inventando papagaios de metal
com cordéis de espuma, do destino
tua boca, nossa língua,
às lâmpadas do sorriso,
infinito, será? do
destino metamorfoseado pelas árvores de papel que brincam no jardim
do quarto enfeitiçado, a loucura, quatro paredes, uma janela, grades
de medo que escondem os plátanos brancos como a cal, diarreia,
vómitos, frio, frio muito, e o medo em cada esquina de luz,
infinito, será? às lâmpadas do sorriso
(amada quem foste, ontem,
madrugada sem leme, madrugada da candeia cerrada como os troncos de
madeira, à noitinha, muito, muito devagar, entras na cozinha,
acendes a luz do silêncio, talvez numa das prateleiras da garagem,
muito devagar?)
às lâmpadas
do sorriso teus lábios
quando escrevem no meu peito
amo-te,
às lâmpadas o uniforme
pó de arroz nas sobrancelhas de algodão que a cidade, que a noite,
que os nossos livros em desejo, amo-te
no meu peito,
às lâmpadas.
(texto de ficção não
revisto)
@Francisco Luís Fontinha