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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

as margens métricas das mortalhas

nunca percebi quem foste, ontem sabia-te perdidamente esquecida numa prateleira lá de casa, na biblioteca, ou na despensa, talvez na casa de banho, sabia-te perpendicular ao sol quando o granito envelhecido, de bengala na mão, descia a montanha, descia vagarosamente até à clareira circular das nuvens mistas entre o amarelo e o verde garrafa, sobre a mesa a vodka esperava pela tua chegada, a amada quem foste, ontem, madrugada sem leme, madrugada da candeia cerrada como os troncos de madeira, à noitinha, muito, muito devagar, entras na cozinha, acendes a luz do silêncio, talvez numa das prateleiras da garagem, muito devagar, os miúdos em calções às voltas com um triciclo enferrujado, triste, elas, as mangueiras embalsamadas dos primeiros orgasmos inventados quando do capim se ouviam gemidos e uivos de borboleta, até que a morte os separe

hoje não, nunca, nunca percebi quem foste, sabia-te perdidamente esquecida dentro de uma lata vazia de qualquer conserva que tu conversavas agarrado ao cigarro indigesto, fumavas-lo sem perceberes que eu existia no quinto andar esquerdo, com quatro janelas e uma porta de entrada, tinhas sono, parecias um mono, um vagabundo, sujo, imundo, e, e hoje, quem foste, como serás hoje em frente ao espelho da pensão Josefina, velha moribunda, rabugenta, esfomeada,

e nem a morte nos consegue separar,

ouviste-me? lembras-te das minhas mãos de insónia? e depois, e depois do sono vaguear sobre o pénis da cidade, madrugadas, fúrias, beijos, beijos que nem a morte consegue separar,

desequilibras-te sobre o arame do desejo

e nem a morte nos consegue separar,

quando o circo aparece dentro do esófago, perdão, sarcófago de verga junto à lareira eu deitado nas tuas pernas, orgias de livros, os meus livros com os teus livros, eu e tu, nós, as sombras construídas nas azinhagas do ciúme

e nem a morte

separa as orgias invisíveis dos nossos livros, ouviste-me? lembras-te das minhas mãos de insónia? e depois, e depois do sono vaguear sobre o pénis da cidade, madrugadas, fúrias, beijos, beijos que nem a morte consegue separar, a morte, separa, acabam-se-me as pilhas, e a cidade, a cidade? qual é a tua cidade meu amor?

nunca percebi quem foste, ontem sabia-te perdidamente esquecida numa prateleira lá de casa, na biblioteca, ou na despensa, talvez na casa de banho, sabia-te perpendicular ao sol quando o granito envelhecido, de bengala na mão, descia a montanha, descia vagarosamente até à clareira circular das nuvens mistas entre o amarelo, o castanho, e o eterno azul marinho quando terça-feira aparece sobre a tua mesa na cozinha, ouves Deus, ouves Deus a falar dele enamorado, ele, não ele, o outro ele, ela distraidamente sentada no muro em paixão, os códigos secretos, um simples olhar

e nem a morte,

um simples olhar na janela dos sonhos e uma carta esquecida, querida, apaixonadamente perdida na prateleira, querida Josefina e nem a morte, e as tuas mãos, e os teus seios no vão de escada da pensão, escadas, cobertores e espelhos, corrimão de madeira, querida, minha quinta-feira Josefina das tardes de incenso, perdi-me, sabia-te esquecida. Perdidamente perdida, os mimos, os nossos livros juntos, felizes, em orgias nocturnas, fúteis

e nem a morte nos consegue separar, qual é a tua cidade meu amor? como são as tuas mãos meu amor? e os barcos meu amor tua boca?

fúteis as margens métricas das mortalhas, os canalhas, quando as muralhas incendeiam as faces ocultas dos planetas submersos nas candeias, a boca, língua, suspensos na genial loucura da geada, o inverno, o frio, o miúdo em calções à sombra de uma mangueira inventando papagaios de metal com cordéis de espuma, do destino

tua boca, nossa língua, às lâmpadas do sorriso,

infinito, será? do destino metamorfoseado pelas árvores de papel que brincam no jardim do quarto enfeitiçado, a loucura, quatro paredes, uma janela, grades de medo que escondem os plátanos brancos como a cal, diarreia, vómitos, frio, frio muito, e o medo em cada esquina de luz, infinito, será? às lâmpadas do sorriso

(amada quem foste, ontem, madrugada sem leme, madrugada da candeia cerrada como os troncos de madeira, à noitinha, muito, muito devagar, entras na cozinha, acendes a luz do silêncio, talvez numa das prateleiras da garagem, muito devagar?)

às lâmpadas

do sorriso teus lábios quando escrevem no meu peito

amo-te,

às lâmpadas o uniforme pó de arroz nas sobrancelhas de algodão que a cidade, que a noite, que os nossos livros em desejo, amo-te

no meu peito,

às lâmpadas.

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha