quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

E Setembro um barco em regresso

Não te sentes, desculpa?, proibido fumar ou foguear ou todas as coisas terminadas em AR, o café está amargo, poucas coisas sobrevivem às tuas mãos, os cigarros, as orelhas postiças dos animais de brincar, desculpa?, não te sentes, e hoje o café não DELTA, e hoje não, não te sentes, circula, corre, caminha, veste-te de vento e vai até às nuvens de fumo, faz-te homem meu rapaz, faz-te homem

- tantas vezes o ouvi, tantas vezes, e no entanto as perdizes livres como as árvores nas planícies junto ao mar, proibido, proibido morrer, e o beijos, hoje, amargos, não DELTA,

faz-te de homem porque lá fora, da rua, os animais perdidos na cidade inventada pelos silêncios heterossexuais das navalhas de prata, coisas pouco belas, algumas até, horríveis como as luzes dos carrinhos de choque que todos os anos estacionam junto ao lago da miséria, os pássaros perderam as asas e as abelhas hoje são doutoras, os barcos enferrujados e que passavam as terdes no cais da desgraça, hoje

- hoje não DELTA, o café amargo, cintilações de silicone suspensas nas difíceis noites sem dormir,

desculpa?, proibido fumar ou foguear, ouvia-o, tantas vezes, algumas vezes, coisas, loiças de porcelana, pulseiras de marfim, dentes de carneiro, e cornos sem fim, palavras, difíceis de engolir, quando a fome entra nos orifícios cinzentos das marés de Setembro, o barco gigantesco faz-se à vida, aproxima-se em pequeníssimas apalpadelas, e aqui, e ali, debaixo de uma ponte de ferro, a criança descobre o amor quando vê dois corações de vidro loucamente entrelaçados como se fossem dois fios de arame, os calções desciam, desciam, desciam pelas escadas transversais da colmeia, e são doirados, lindos, os olhos de Lisboa à noite, ouvia-o

- hoje,

e deixamos de o ouvir quando o barco se amarrou aos cais e as abelhas cor de mel desceram silenciosamente até perderem numa pensão de meia-tigela esquecida numa ruela sem janelas, árvores, gaivotas, velas, esquecida numa ruela sem jornais, cortinados, velhas e velhos de chocolate com mãos de açúcar, e hoje

- hoje não DELTA, o café amargo, cintilações de silicone suspensas nas difíceis noites sem dormir, e hoje os barcos enferrujados, velhos, apodrecidos, os barcos enferrujados e que passavam as terdes no cais da desgraça, hoje, hoje também são doutores, ouvia-o

desculpa?

- quantas horas tens de mar? ouvia-o,

desculpa?, muitos dias, noites e marés, não falando nas noites de descanso vividas em longínquas coxas de oiro, e púbis de cetim, desculpa?, ouvia-o

- estás licenciado, por equivalência és doutor, também

e pela primeira vez na vida o miúdo percebeu o que era o amor, a paixão, Lisboa à noite, e apetece-me recordar e escrever (Lisboa há noite), ninguém sobrevive ao medo das calçadas que terminam no rio, ouvia-o, faz-te de homem porque lá fora, da rua, os animais perdidos na cidade inventada pelos silêncios heterossexuais das navalhas de prata, coisas pouco belas, algumas até, outras não, e eu inventava-me de homem, comprei um fato e uma gravata, e sapatos pontiagudos, estás lindo

- perfeito meu querido, perfeito,

e eu tal como os barcos, também doutor, por equivalência,

- a carta de marinheiro,

e Setembro foi sempre um barco que regressava de longe, um miúdo que descobria o amor, dois corações de vidro loucamente entrelaçados como se fossem dois fios de arame, os calções desciam, desciam, desciam pelas escadas transversais da colmeia, e um paspalho qualquer aos gritos

- Lisboa, Lisboa, Lisboa.

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

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