terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Jardins de fósforo

Tudo branquinho, e frio, o café moliceiro que os nervos de arame rompem o esqueleto ensonado, a cama, chama, a cama brincando no soalho zarolho, áridos, cansados cobertores, as cartas de amor, nas árvores aos jardins de fósforo depois do suicídio das flores coloridas, o equilíbrio, e frio

- e frio, o café moliceiro que os nervos de arame rompem o esqueleto ensonado,

a tenda de circo, o sufoco, a trapezista, dias e dias de sufoco quarta-feira à noitinha depois de grandiosas amarguras, e frio, está bem meu amor, mais cansado, que o comboio das dezoito e trinta, chegavas a Belém como um figurante e escondias-te entre os carros invisíveis que flutuavam sobre os cachimbos de névoa, traineiras, olhos de vidro, cabeleiras postiças e pulseiras de pechisbeque, teus, corações de cereja, e sempre acreditei que no teu peito habitava uma gaivota embalsamada,

- hoje cansei-me, hoje

acordavas de manhã, mal percebias que ele existia na tua cama de sofrimento, vivias nas ressacas e nos caranguejos entre pernas partidas e alicates de silêncio

- hoje cansei-me, hoje nem um beijo na face oculta do meu cadáver,

e dizias-me que o silêncio construía ruas desertas com casas desertas com homens desertos, e camelos muitos, a areia das palavras distribuídas pelas algibeiras de sucesso, doutores, engenheiros, sacerdotes, e mendigos, bêbados que a noite, e escondias-te, que a noite e escondias-te debaixo dos meus braços, gritavas alto, estremecias todo o prédio, não dormias, tinhas suores e diarreia, e vómitos, e todos os vidros das tuas janelas se partiam com a alvorada,

- hoje cansei-me, hoje a madrugada,

acordavas de manhã, mal percebias que ele existia

- hoje cansei-me,

que ele existia e vivia, que ele amava e sentia, a doçura melancólica das cerejas com chocolate, colocavas uma venda nos olhos, calçavas as luvas de cabedal, e em pequenas caricias percorrias cada milímetro quadrado do meu corpo bibliotecário, prateleira por prateleira, livro por livro

- sinto-te dentro de mim com todas as letras do alfabeto, sinto-te com todas as palavras, sinto-te em mim de mim como quando caiem lá fora as finas partículas de desejo, sinto-te, sinto-te vestida de noite, sinto-te em círculos negros com algas e vapores de iodo, e hoje cansei-me, hoje a madrugada, que ela existia,

por livro, pegavas num qualquer aleatoriamente, abrias-lo, folheavas-lo, e não percebias que o livro era eu e que

- hoje a madrugada,

era eu que pintava o céu de azul e desenhava as ondas no mar, ouvia-te longitudinalmente

- não acredito,

e podes acreditar, na raiz quadrada, nas equações do segundo grau, e podes acreditar que tudo branquinho, e frio, o café moliceiro que os nervos de arame rompem o esqueleto ensonado, a cama, chama, a cama brincando no soalho zarolho, áridos, cansados cobertores, as cartas de amor, beijos, hoje a madrugada disfarçada de geometria, ao pequeno-almoço um prato de letria, e ouvia-se o mar sobre a mesa estacionada na cozinha,
todo o prédio estremecia, um vento cinzento apagava a lareira com finas pétalas de vidro, o cheiro intenso a morte, a barcos, a rosas antes de tu as pintares e as depositares no interior de um desgraçado livro, coitado dele, tenho pena da solidão dos livros, sinto-te enfeitada com folhas de roseira e picos de medo, na cozinha, derretiam as sílabas dos gemidos lamentos dos teus difíceis diálogos em finais de tarde, e a tuas queridas irmãs

- hoje cansamos-nos, hoje a madrugada, e ternamente aborrecidas com as mãos dos delatores sexos que o inverno congela nas prateleiras

e as tuas queridas irmãs,

- nas prateleiras que todos os prédios em ressaca têm sobre os ombros ossudos e dos vestígios do alumínio em rolos de dez metros, filamentos de frio, o café moliceiro, e nem os teus lábios na despedida das quatro janelas com vidros do loiro cabelo quando ao acordares abraçavas um qualquer transeunte em direcção à outra margem,

e as tuas queridas irmãs, gritavas alto, estremecias todo o prédio, não dormias, tinhas suores e diarreia, e vómitos, e todos os vidros das tuas janelas se partiam com a alvorada, e todos os vidros das tuas janelas morreram.

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha
Alijó

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