Poucas coisas me
importam,
não me importando sequer
que um rio de sumo de laranja corra na minha aldeia, não me
importando sequer que metade de uma laranja que com o seu sumo serviu
para alimentar o rio que corre na minha aldeia, não me importando
sequer que eu viva numa aldeia, não me importando que eu habite numa
cabana longe da minha aldeia, no cimo da montanha, poucas coisas me
importam
- o meu filho deixou de
se importar com as sombras dos pinheiros de Carvalhais, o meu filho
deixou de se importar com a eira de Carvalhais, onde se sentava sobre
as lajes graníticas a ouvir o telintar dos pássaros dentro da
sombra dos pinheiros, o meu filho, que deus o tenha, deixou de se
importar com os livros e com as coisas, que coisas mãe?, coisas
tuas, coisas minhas, coisas dos teus irmãos, coisas que ficaram na
eira de Carvalhais, onde estão os meus irmãos?, coisas, coisas
dele,
coisas que pouco me
importam, importo-me com a noite e com a cidade arrumada e sempre com
os lençóis esticados, importando-me importo-me com as laranjas que
depois do sumo são o rio onde me sento no final da tarde a contar as
traineiras que vêm e vão, subtraio as que não regressaram, e
também eu
- não quero regressar, e
nunca gostei de relógios de pulso, de relógios de parede, das
igrejas com relógios e sinos, e detesto os relógios de sol, e se eu
pudesse
sempre noite, sempre
geada, sempre uma cidade incendiada pela saudade dos arrepios que o
vento transporta do outro lado da ravina, a ponte em madeira está
doente, caquética, precisa de drageias para adormecer e de vitaminas
para engordar, está grávida, dizem que é uma menina e deve,
possivelmente, talvez
- nascer em Janeiro,
talvez de vitaminas,
radiografias ao pulmão esquerdo, o senhor está uma lastima, eu
doutor? Não o vizinho do terceiro esquerdo, claro que é o senhor,
- nascerá em Janeiro,
parabéns,
mas eu bem doutor, deve
ser engano, só pode ser engano, até engordei
- estás mais gordo meu
querido filho,
vê? Percebe agora porque
poucas coisas me importam? Coisas que pouco me importam, importo-me
com a noite e com a cidade arrumada e sempre com os lençóis
esticados, importando importo-me com os pinheiros adormecidos em
Carvalhais e extintos com a passagem das horas
- percebe agora porque
detesto todos os relógios doutor? Não sei, talvez, o pior é
respirar, dói-me Às vezes, outras importo-me com o sumo de laranja
da metade da laranja esquartejada pelas mãos da minha mãe, Queres
com açúcar?, e os meus irmãos, não percebo, percebo, fugiram,
morreram, desertaram antes de nascerem, abaixo-assinado, nós os
filhos da mãe
vê doutor, o que será
deste desgraçado sem mim...
- importo-me não me
importando que as letras se vistam de números, e depois em relógios,
um livro transformar-se-há em guilhotina amovível com o ponteiro
dos segundos bem afiado, e afianço-lhe dona Amélia que o seu menino
está bem dos pulmões, algumas drageias e nada de relógios de
pulso, nada, absolutamente nada, abstinência de relógios, e lá um
copito às refeições tudo bem, não é importante,
vê doutor, o que será
deste desgraçado sem mim...
- mas eu bem doutor, deve
ser engano, só pode ser engano, até engordei
diz-lhe mãe!,
- não me importo mas
importo-me com as acácias sem dono que caminham durante a noite na
cidade proibida, não me importando mas importo-me que amanhã tenhas
lágrimas nos teus olhos, porque quando os meus irmãos desaparecem
depois de cair a noite, a dona Amélia
diz-lhe mãe!,
- vê doutor, o que será
deste desgraçado sem mim...
cuidado com os relógios,
principalmente os de pulso.
(texto de ficção não
revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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