quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Guilhotina amovível com o ponteiro dos segundos bem afiado

Poucas coisas me importam,
não me importando sequer que um rio de sumo de laranja corra na minha aldeia, não me importando sequer que metade de uma laranja que com o seu sumo serviu para alimentar o rio que corre na minha aldeia, não me importando sequer que eu viva numa aldeia, não me importando que eu habite numa cabana longe da minha aldeia, no cimo da montanha, poucas coisas me importam

- o meu filho deixou de se importar com as sombras dos pinheiros de Carvalhais, o meu filho deixou de se importar com a eira de Carvalhais, onde se sentava sobre as lajes graníticas a ouvir o telintar dos pássaros dentro da sombra dos pinheiros, o meu filho, que deus o tenha, deixou de se importar com os livros e com as coisas, que coisas mãe?, coisas tuas, coisas minhas, coisas dos teus irmãos, coisas que ficaram na eira de Carvalhais, onde estão os meus irmãos?, coisas, coisas dele,

coisas que pouco me importam, importo-me com a noite e com a cidade arrumada e sempre com os lençóis esticados, importando-me importo-me com as laranjas que depois do sumo são o rio onde me sento no final da tarde a contar as traineiras que vêm e vão, subtraio as que não regressaram, e também eu

- não quero regressar, e nunca gostei de relógios de pulso, de relógios de parede, das igrejas com relógios e sinos, e detesto os relógios de sol, e se eu pudesse

sempre noite, sempre geada, sempre uma cidade incendiada pela saudade dos arrepios que o vento transporta do outro lado da ravina, a ponte em madeira está doente, caquética, precisa de drageias para adormecer e de vitaminas para engordar, está grávida, dizem que é uma menina e deve, possivelmente, talvez

- nascer em Janeiro,

talvez de vitaminas, radiografias ao pulmão esquerdo, o senhor está uma lastima, eu doutor? Não o vizinho do terceiro esquerdo, claro que é o senhor,

- nascerá em Janeiro, parabéns,

mas eu bem doutor, deve ser engano, só pode ser engano, até engordei

- estás mais gordo meu querido filho,

vê? Percebe agora porque poucas coisas me importam? Coisas que pouco me importam, importo-me com a noite e com a cidade arrumada e sempre com os lençóis esticados, importando importo-me com os pinheiros adormecidos em Carvalhais e extintos com a passagem das horas

- percebe agora porque detesto todos os relógios doutor? Não sei, talvez, o pior é respirar, dói-me Às vezes, outras importo-me com o sumo de laranja da metade da laranja esquartejada pelas mãos da minha mãe, Queres com açúcar?, e os meus irmãos, não percebo, percebo, fugiram, morreram, desertaram antes de nascerem, abaixo-assinado, nós os filhos da mãe

vê doutor, o que será deste desgraçado sem mim...

- importo-me não me importando que as letras se vistam de números, e depois em relógios, um livro transformar-se-há em guilhotina amovível com o ponteiro dos segundos bem afiado, e afianço-lhe dona Amélia que o seu menino está bem dos pulmões, algumas drageias e nada de relógios de pulso, nada, absolutamente nada, abstinência de relógios, e lá um copito às refeições tudo bem, não é importante,

vê doutor, o que será deste desgraçado sem mim...

- mas eu bem doutor, deve ser engano, só pode ser engano, até engordei

diz-lhe mãe!,

- não me importo mas importo-me com as acácias sem dono que caminham durante a noite na cidade proibida, não me importando mas importo-me que amanhã tenhas lágrimas nos teus olhos, porque quando os meus irmãos desaparecem depois de cair a noite, a dona Amélia

diz-lhe mãe!,

- vê doutor, o que será deste desgraçado sem mim...

cuidado com os relógios, principalmente os de pulso.


(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

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