segunda-feira, 8 de abril de 2013

A rua dos Caracóis

Não, tenho medo de perceber que a noite acontece, apenas, e só, porque nos teus olhos cresceram as margaridas das madrugadas em flor – Desculpa, onde colocaste a pilha de livros que estavam sobre a mesa da cozinha? - sei lá, talvez, e... - Porquê? - Olha... já viste na casa de banho? Não, tenho medo de
(trazias no bolso a caixa de fósforos, na camisa, sempre acreditei que fossem cigarros, não, não eram, e medo, só, a escrever, sentado sobre um pedaço de xisto, só com duas, colheres, de, prata, sim, eram de prata, e depois ouviam-se-lhes os guisos melódicos das palavras por escrever, mortas, nunca escritas, porque a saudade é de borla, pintavas as telas com acrílicos mergulhados em bagaço, o Conhaque sabia-te a Primavera sem nuvens, sem lágrimas, sem...)
Eras bela, diziam todos os espelhos dos guarda-fato da rua dos Caracóis, e – Porquê? - e porquê o quê? O amor, sabes o que é? Sei o que são rios fingidos como as ervas junto à eira de Carvalhais, e tu
(sentava-me no degrau do palheiro, e quando o vento batia no espigueiro, ouvia, tenho a certeza, ouvia poeticamente os Fingertips sobre a ponte do rio Sul, nas Termas, os patos silenciados pelas cascatas de areia dos olhos tricolores das meninas que brincavam junto às ruínas dos balneários Romanos, e além de ouvir os Fingertips, via o Rei e a Rainha, coitados, tão tristes, e tão belos, e assim se curou o primeiro Rei de Portugal e a última Rainha de Portugal, eu olhava a ponte e apetecia-me abrir os braços e...)
E tu parecias janelas construídas em madeira envelhecida, e sempre encerradas, perdoa-me, mas... tenho medo, do vento, das palavras, das ruas e dos gritos dos pinheiros em castelo – E do silêncio que vinha dos espigueiro recheado de espigas de milho... - e não havia luz que iluminasse as tristes mercearias da rua dos Caracóis, sem candeeiros, sem transeuntes, sem palavras ou traficantes – Uma rua sem traficantes é como um jardim sem flores – ou como um homem sem mãos, ou uma mulher sem pétalas de rosas, e nós tínhamos as canções de Outono regressado dos perfis laminados do inferno complexo de rochas em papel, desenhos na traseira das portas das casas de banho – Fulano é um corno – ou – Imagina a mulher da tua via... agora, imagina-a a cagar – ou – Me liga amor, me liga – e mentalmente fotografava a preto-e-branco as imagens sem literatura, poucas palavras, como as ervas junto ao palheiro, que, de vez em quando, olhavam, acariciavam... o velhinho espigueiro de
(Carvalhais à solta, terreno abaixo, ribeiros submersos em musgo caligrafado pelos olhos das moscas em delírio, e assim, quando o relógio de pulso abria a boca, quando abria, sorria-me em trinta e cinco suaves prestações, e eu, eu recordava-me da tapada com o pulmão ensanguentado de pinheiros, fieitos, e pequenas coisas que o avô guardava dentro de um envelope, e depois, enviava, pelo correio, sem destino, sem direcção, sem nomes, até que um dia descobriu o casebre do monte Desgraçado, e chegava derreado, o Domingo de Páscoa)
Endurecido pelas chamas do insignificante poema à menina Sem Nome, com uma simpática estrutura de madeira assente sobre um esqueleto de pedra, os ossos rijos – Como vão esses ossos Avô Velhinho? - e ele dizia-nos – Tal como quando regressei de França, da Primeira Grande Guerra, meu rapaz – e apenas com uma mão fazia o que eu nunca consegui fazer
(fazer um cigarro)
Tentei, tentei... e desisti quando percebi que os carris onde circulava um comboio de espuma, aquele que às vezes aparece nos sonhos dos meninos, tinha desaparecido, como desapareceram, o palheiro, a eira, o espigueiro e a casa, e quanto à tapada
(fugiram todos os pinheiros mansos)
E os cigarros em prazer de ácidos e argamassas com chocolates embrulhados em telhas de vidro, e sabíamos que as bolas de golfe brincavam sobre a secretária, depois, tínhamos os cachimbos, uns em madeira, dois em vidro e outros dois de espuma do mar, um de água, e um livro com fotografias onde habitavam corpos despedaçados, horrível, horrendo, frágeis as minhas tuas mãos quando nos sentávamos no banco de madeira em frente aos Correios... e não, foi fuzilado por promover o amor, condenado, foi mandado destruir pelas mãos do Presidente da (de) Câmara, e hoje apenas uma fileira de árvores solitárias caminha nocturnamente depois de cair o cortinado da lua, baixam-se as persianas, retiras o penoso soutien de veludo... e – Apetece-me pegar-te na mão e inventar o mar no teu peito! - e eu, apressadamente, erguia âncoras e íamos até ao infinito...
(fugiram todos os pinheiros mansos).


(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 7 de abril de 2013

Papel-químico

foto: A&M ART and Photos

Descia a rua e ninguém a cruzar-se comigo, sentia-me estranho e só, e todas as montras dos estabelecimentos comerciais, tapadas com jornais velhos, provavelmente encerradas, por ventura, há muito, pois as teias de aranha transpareciam para o exterior, havia um cheiro bafiento, penumbro, um cheiro a abandono, como aquele característico cheiro de quando somos abandonados por alguém e ao passarmos na rua – Coitado, cheira a abandonado – e aos poucos a tarde mergulhava no papel-químico para ser reutilizado na tarde seguinte, talvez amanhã, talvez depois de amanhã, ou... talvez nunca,
Tínhamos um cão rafeiro com olhos castanhos, pêlo curto, dentes afiados como lâminas de barbear, e quando se chateava comigo, eram os meus tornozelos que o pagavam, a fúria e o rancor, a maldição sobre a minha presença, e parece que nunca gosto muito da minha sombra, berrava-me e quando eu regressava tardíssimo a casa, lá esta ele à minha espera, como se eu precisasse de alguma coisa, ele, ele ajudar-me-ia... coitado do infeliz, coitado daquele que acredita que pode, e no entanto, pouco ou nada poderá fazer, a não ser, ladrar, ladrar e ladrar... coitado do Noqui I, como todos os cães, ladrar, ladrar e ladrar – Havia sorrisos de açúcar sobre a mesa das toalhas brancas – e hoje pergunto-me a razão de todos os rafeiros pertencerem a uma classe de fanfarrões, que não aguentam com um estalo no focinho, como os homens, e as pombas e as formigas
Pegava no papel-químico de anteontem, e colocava-lhe em cima um laço azul-escuro, e depois abria a janela e mergulhava-os no Sol de fim de tarde, regressavam as imperiais e o prato com tremoços, quatro o cinco, às vezes, seis, marinheiros sem embarcação definida – Queres dizer... desempregados? - não, não, marinheiros apenas de patente, marinheiros de esplanada, e quase no encerramento do dia, quando Deus com os seus assessores, faziam a contabilidade do dia... tínhamos sobre uma mesa redonda, e frágil, “cuidado – Frágil - “ aproximadamente oitenta copos de vidro, vazios, solitáriamente como andorinhas e botões de rosa,
E as formigas subiam árvore acima até encontrarem o fruto embrulhado em papel-químico, este, o de ontem, reviam o dia, visionavam as imagens sombreadas pelos lápis de cor das crianças da rua dos Alecrins, e uma senhora de bengala e óculos de sol, a que todos chamávamos de Dona Maria Dona, que vivia só, sem parentesco conhecido, pegava na bengala e corríamos como se fossemos moscas disfarçadas de gaivotas, deixávamos cair os lápis e quando chegávamos a casa, as nossas mães ao questionarem-nos – Os lápis de cor? - em uníssono respondíamos que...
Fugiram, mãezinha,
Hoje desço a rua e ninguém a cruzar-se comigo, sentia-me estranho e só, e todas as montras dos estabelecimentos comerciais, tapadas com jornais velhos, provavelmente encerradas, por ventura, há muito, pois as teias de aranha transpareciam para o exterior, havia um cheiro bafiento, penumbro, um cheiro a abandono, como aquele característico cheiro de quando somos abandonados por alguém e ao passarmos na rua – Coitado, cheira a abandonado – e quem nunca foi abandonado que atire a primeira pedra – É o atiras... -, e continuam lá, as frágeis mesas de esplanada, e continuam lá, as frágeis resmas de papel-químico dos dias passados desde mil novecentos e oitenta e sete, lá, como continuam lá, frágeis os queridos homens desesperados na ânsia de encontrarem companhia para as noites frias de Inverno, como continuam lá, as frágeis mulheres, com flores ao peito, com cabelos de chocolate, que se comiam nos intervalos do cinema,
Fugiram, mãezinha,
Olá, sou o Francisco – Muito prazer, sou a Maria André! - mas entre, entre e esteja à sua vontade, faça de conta que está em sua casa – Sim, claro, sim – e as frágeis formigas, como os lápis de cor, que quase sempre se perdiam – Os lápis de cor? - respondia-lhe
Fugiram mãezinha, fugiram,
Que se comiam nos intervalos do cinema, à luz dos candeeiros a petróleo, - Sopa? - não, não gosto de sopa, nunca gostei, detesto, como detestava as formigas do quinto esquerdo, sós, sem acesso ao sótão, ele voltou, sinceramente, e hoje, ficava lá, e hoje não regressava, e hoje, pegava nas folhas de papel-químico do avô Domingos, que religiosamente guardava numa caixa, e confesso que nunca percebi para que serviam, e mais tarde vim a descobrir que eram a cópia dos dias passados, coitado, e pegava nas folhas de papel-químico e construía uma papagaio, o pulsar do cordel enrolado no pulso, como um cabo de aço a prender árvores à terra com cheiro a chuva e a fogo, ouvíamos o tilintar das carapaças dos caranguejos esquecidos junto ao circo – O que são mangueiras? - mesmo debaixo da roulote dos palhaços, sentia-lhes as patas da frente contra os rodados de borracha como tenazes nas lareiras de trás-os-montes, e estávamos tão longe, distante, e descíamos a rua, descia a rua e ninguém me cumprimentava – Bom dia senhor Francisco! - olá bom dia Dona Menina Dona, e seguia, olhava e não ninguém, não havia árvores naquela cidade, barulhos, pedras de encontro às montras escondidas pelas velhas folhas de jornal – Procura-se Francisco Luís Fontinha – e não acredito
(Olá, sou o Francisco – Muito prazer, sou a Maria André! - mas entre, entre e esteja à sua vontade, faça de conta que está em sua casa – Sim, claro, sim – e as frágeis formigas, como os lápis de cor, que quase sempre se perdiam – Os lápis de cor? - respondia-lhe
Fugiram mãezinha, fugiram),
E nunca mais o encontraram, e nunca mais regressou, e pergunto-me, se o jornal que enfeita a montra diz que “ Procura-se Francisco Luís Fontinha” e se isso aconteceu há mais de dez anos, logo
A cozinha não tinha janela para as traseiras – Não percebi – estava a brincar, porque se a cozinha fica na fachada da frente, isto é, a cozinha tem janela para o alçado principal, pela lógica, pela lógica a cozinha não tem janela para as traseiras do prédio, logo
Há mais de dez anos que este estabelecimento comercial está encerrado – Não percebi! - repara, logo a cozinha não tem janela, logo
Dou-me conta que caminho pelas ruas de uma cidade fantasma, uma cidade que existe e não existe, digamos que – Bom dia dia menino Francisco – olá bom dia, Dona Teresa, como está a netinha? - Crescida e preguiçosa – Pois, pois... - como os barcos esquecidos no Terminal de Cruzeiros da Rocha Conde de Óbidos, presos a um cordel e um velho parecido com o avô Domingos a passeá-los rua acima, rua abaixo, e ninguém, nenhuma pessoa, nenhuma sombra, nada
Que desinquietasse a cidade fantasma,
E nada, tal como os lápis de cor - Fugiram mãezinha, fugiram – e a cidade, quando começava a noite, embrulhava-se no papel-químico e entrava dentro da caixa de cartão, até que mais tarde, ele, quando se lhe entranhava a solidão nos ossos, a abria, retirava o papel-químico e começa a recordar imagens que nunca
Existiram,
E que ele acredita terem existido.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 6 de abril de 2013

mil novecentos e oitenta e nove - quarto andar – sala um


Um verso desesperado
na tua mão solitária,
um vidro partido
na árvore dos sofrimentos
quando vem a manhã,
e ele ausente
de ti e de mim,
e ele mente
como toda a gente
quando chove torrencialmente
e caiem as estrelas do nocturno Céu
em desassossego,

O medo sabe escreve nos olhos da noite
como quando tínhamos os abismos segredos
em planícies de solidão,
agredias os meus tristes olhos
com o rancor das tuas lágrimas,
vestias-te de alegria
e dançavas,
comias,
brincavas sobre o meu corpo esmiuçado
entre os cigarros de tinta da china
que o merceeiro nos fiava,
e um pequeno panfleto de açúcar entranhava-se nas tuas veias...

Chegava o carteiro com palavras tuas escritas em papel de arroz
e uma andorinha saltitava no pequenos postal artesanal,
miúdo, pequeno morcego de luz,
e no entanto, vinham os insignificantes plásticos com as sandes
e os carnívoros sons das garrafas de vodka,
era festa lá em casa
bebíamos, comíamos... e dormíamos
e felizmente
sempre tivemos tempo para acordar,
outros
não acordaram nunca
e assim voaram até ao cais dos embalsamados ossos de penicilina...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
06/04/2013 - Alijó

A cidade das ratazanas em porcelana

foto: A&M ART and Photos

Uma cidade em chamas, um povo em alvoroço, as árvores balançam com a fome do povo em alvoroço, e tu, tu aí sentada, a fumar cigarros, como se não estivesse a acontecer nada de especial, está tudo bem dizes-me tu, não há problema, arreganha-me os dentes o teu pai, e no entanto, balançam as árvores, e no entanto, de tanto balançarem... poderão cair, sobre as mãos líquidas do povo em alvoroço, cansado de sofrer, e sem rosto, recomenda-se, e até diria que nunca vivemos como hoje, somos felizes, somos um casal feliz, sorridente, somos perfeitamente... os mais parvos do bairro onde vivemos – És tão pessimista, meu querido! - como fui pessimista quando fugi para cima de uma árvore, quando criança, e só consegui descer com a ajuda dos bombeiros, e tudo, porque, o Alberto meteu-me em cabeça que se eu estendesse um arame no caminho para o bairro, a meia altura do chão, era engraçado quando o senhor António passasse de motorizada, já noite dentro, e com algum desequilíbrio devido à falta de luminosidade ou porque o tinto da tasca da dona Francisca era do melhor que havia, não interessa, o problema foi que quando o pobre do homem vinha no seu rame-rame, pumba, ele para um lado e a pobre da motorizada para outra, conclusão – Quase que era degolado! - decapitado, poderá dizer-se, e ainda nós não vivíamos na Coreia do Norte, ou na China, que a família do pobre condenado à morte por fuzilamento, coitados, têm de pagar a respectiva munição – Queres tu dizer, meu querido, têm de pagar a bala? - sim, é isso, sim...
(os animais humanos sem direitos porque o direito do dinheiro fala mais alto do que a dignidade, tudo se cala, aqui e fora daqui, e assim vão enviando contas de munições a cada família que por azar, um dos seus queridos resolveu desafiar o sistema – E? - sim? - E se eles tiverem fraca pontaria, isto é, se o condenado precisar mais do que uma bala para voar até ao infinito amanhecer? - boa pergunta, minha querida, nunca tinha pensado nisso...)
Sim, talvez, talvez prendam as árvores com fios de aço para que não balancem tanto, mas... - Mas, meu querido, não há aço que aprisione o pensamento, e esse, vai sempre balançar... - mas esta cidade começa a ficar infestada de ratazanas, cabrões e pratos de porcelana...,
(depois dizes-me alguma coisa? - Sim, minha querida, digo)
Amo-te – Desculpa, não sabia, minha querida – e o “panasca”, desde miúdo que nunca gostou de sopa, papas, ou coisas similares, e agora – Obrigaram-te a comer sopa? - e agora digo-o, sem medo que te amo, e pergunto-me, questiono-me, adormeço pensando em ti, e a perguntar-me - E tu rapaz, sabes o que é o Amor? - desculpa, não sei o que são veredas cinzentas com fios de aço, desculpa, minha querida, não sei o que são fios de prata enrolados em pescoços feios, lânguidos, bronzeados cálices de azevinho, mórbidos, esfomeados como o fumo das sanzalas sem candeeiros de oiro, sem rios de magnésio, sem nuvens de chocolate, como a vida de “merda”, a nossa vidinha, de bairro de preferia,
(de uma cidade em chamas, um povo em alvoroço, as árvores balançam com a fome do povo em alvoroço, e tu, tu aí sentada, a fumar cigarros, como se não estivesse a acontecer nada de especial, está tudo bem dizes-me tu, não há problema, arreganha-me os dentes o teu pai, e no entanto, balançam as árvores, e no entanto, de tanto balançarem... poderão cair, sobre as mãos líquidas do povo em alvoroço, cansado de sofrer, e sem rosto, recomenda-se, e até diria que nunca vivemos como hoje, somos felizes, somos um casal feliz, sorridente, somos perfeitamente... os mais parvos do bairro onde vivemos – És tão pessimista, meu querido! - como fui pessimista quando fugi para cima de uma árvore, quando criança, e só consegui descer com a ajuda dos bombeiros...,)
Começo – Não percebi, minha querida! - ah... sim, quando lá passar eu digo-lhe, fica descansada, começo a ficar farto das palavras, dos poemas e dos textos que parecem poemas, começo a ficar farto, dos livros, e das coisas parecidas com livros, começo a ficar farto com o amor e com todas as coisas parecidas – Terminadas em dor? - ou isso, é-me igual, desigual seria se quando regressasse a casa e não encontrasse a porta de entrada, o pior seria se regressasse a casa, encontrasse a porta de entrada, entrasse, e lá dentro, nada – Como nada, meu querido? - nada, nem paredes, nem janelas, nem escadas, nem móveis, absolutamente nada – Imagino-o, meu querido, imagino-o... - e mesmo assim pedia à vizinha do lado – Vizinha, faz o favor de me emprestar a corda de nylon que serve para prender o seu burro à oliveira da terra funda? - ela meia mouca – Quer-se matar, menino? - e como posso eu explicar-lhe, a ela, à dona Francisca, que a corda era apenas para eu lançar ao ramo mais forte da árvore do quintal, e tentar subir até que não existisse mais árvore – Como o fizeste na infância? - e depois vinham os bombeiros, e eu descia
(sim, como o fiz na infância)
E descia, e descia, descia...

(quase ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Porque não sonhas com...

foto: A&M ART and Photos

Acordei cedo, sonhei contigo, e a cabeça estoirava-se-me, alguma coisa que eu tenha deixado sem me aperceber, quero dizer, alguma coisa que eu tenha esquecido sobre a mesa-de-cabeceira, um parafuso, uma porca, um anel ou a pulseira de pechisbeque que comprei no ano passado na barraca do cigano zarolho, mas não sei, meu querido, talvez o copo de água, talvez devido a um dos vidros da janela do quarto estar quebrado, mas... esta dor – Dormes poucos, meu querido – e não, não durmo pouco, nunca dormi pouco, e recuso-me a admitir de durmo pouco, mas durmo, sonho, às vezes, com pedras – Acreditas nisto? Quem sonha com pedras? - mas é verdade, sim, eu sonho, porquê?
(domingo vou à penitenciária visitar o André)
Porque, meu querido, não é normal sonhares com pedras, as pedras não são, não fazem parte dos sonhos – Então com que objectos posso eu sonhar? Se existem objectos para o efeito... - ora, sei lá agora, podes sonhar com o mar quando desce a tarde – Não gosto mais do mar – podes sonhar com as gaivotas em voos triangulares sobre o Tejo – Também deixei de gostar do Tejo e de triângulos – olha, porque não sonhares com
(sinto-o muito magro, diz que não lhe apetece comer, diz que não dorme, que a cela é sombria e húmida, tem os olhos adormecidos, percebes? Parecem o romper da madrugada, mas por alguma razão externa à natureza, a madrugada ficou submersa no horizonte, meia sombria, meia adormecida, meia ensonada, são assim, os olhos do André, sabes? Tenho, tenho pena dele e da solidão que habita nele, tenho pena de ser eu a única visita que tem, a mãe, que não pode, sempre atarefada, a irmã, estuda à noite e trabalha de dia, o irmão mais novo, que não tem coragem para entrar numa penitenciá, tretas, meu querido, tretas, porque a mãe encontro com o amigo, de braço dado a passear no Rossio, à irmã, sim a que diz estudar e trabalhar, essa galdéria, vejo-a sempre com namorados diferentes rua acima, rua abaixo, e)
Experimenta sonhar com nuvens – Nuvens? - vou agora sonhar com nuvens...
(e o cabrão do irmão mais novo sempre com o rabo sentado na sala de jogos, umas vezes a jogar bilhar, outras a ver jogar bilhar, e quando está teso, sabes como é, faz-se à vida, e vai até Belém, engata aqui, engata ali... e o irmão que se lixe – Sabes, meu querido? - tenho pena do André...)
Depois lembrava-me de chuva, e a chuva faz-me recordar as árvores, e as árvores a terra, e a terra o cheiro, e o cheiro..., um quintal esquecido no meio do capim – Talvez consiga sonhar com as bonecas de porcelana da tia Clementina – boa, porque não tentas?
(sinto-o triste, coitado do André)
Às vezes, lembrei-me agora mesmo, tenho medo do sono, é isso, medo de adormecer e não acordar – Medo de morrer... - não, não é medo de morrer, é medo, medo de não acordar, ficar eternamente a dormir, sem pegar em livros, sem ver palavras, sem olhar as flores . Sem ires visitar o André! - sim, também, é esse medo que me preocupa, é esse medo que não me deixa adormecer, assim – Assim enquanto estiveres acordado... - claro, enquanto estiver acordado tenho a certeza que a terra não dorme, e tenho a certeza que a noite não termina nunca, e
(triste)
E consigo ouvir uns pássaros parvos que não dormem nunca, oiço-os toda a noite – Se calhar estás a sonhar que ouves pássaros...! - a sonhar, eu? Eu não sonho, deixei de sonhar, não acredito em sonhos, não
(estás tão pálido, meu querido)
Que não, porque a claridade existe para te proteger das embaciadas línguas de fogo que a maré lança para os barcos, e quando pensávamos que estávamos de mão dada, tu, percebias que eu tinha deixado de existir, estavas só, como sempre, só, e eu, eu nunca percebi a tua solidão, ausentava-me quilómetros de rio até desaguar nas rochas juntamente com o descarregador do esgoto, e
(misturavas-te com a cidade)
E como sempre, a cidade perdidamente perdida nas arruadas sem saída – Tens visitado o André? Como está ele? - uma cidade penumbra com janelas de vaidade, casas que chegam ao Céu, e automóveis que não cessam nunca de caminhar, não dormem, como ele
(triste, muito triste, mas vai-se aguentando)
E como ele, também os outros, aqueles que acordam cedo, e correm para a cidade, fazem-se à vida, às vezes têm azar, e é a vida que se faz a eles, outras vezes, são uns pássaros negros, muito grandes, maiores que os edifícios – Aviões? - sim, esses mesmo, que os levam e nunca mais regressam...
(e que nunca mais vou sair daqui – Claro que vais, André, claro que vais).

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Infinito Inferno

foto: A&M ART and Photos

Se eu me perco mar adentro
dizes que sou um barco desgovernado
em sofrimento
um barco aparvalhado,

E nem gota de água consigo ser
nem tão pouco um papagaio de papel
não sou palavra de escrever
nem ponta de cordel,

Se eu me perco perdido vou andar
quando da noite de Inverno
a nossa lareira se apagar,

Livremente só como as árvores em flor
perdidamente alegre dentro do infinito inferno...
no indiferente amor.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 4 de abril de 2013

E no Sábado?

foto: A&M ART and Photos

Há uma parede ínfima que separa a saudade da vontade de regressar, há uma brecha na parede ínfima onde me é permitida a entrada, e mesmo sendo apenas ao Sábado, eu entro, e fico lá, a olhar os pedaços de loiça que sobejaram da catástrofe que as madrugadas sem destino provocaram na melodia que junto à noite ouvíamos, provavelmente, da casa do vizinho, mas ao longe, um senhor de barba, todos os finais da tarde, saboreava o seu trompete, e eu, uma criança curiosa, inventava palavras para justificar aqueles sons, que ainda hoje oiço, cerro os olhos, e a música flui em mim como o vento quando enrola os lençóis pendurados no estendal perdido no quintal, lá, misturam-se couves, cebolas, tomates, feijão-verde, alhos e algumas galinhas em processo de rescisão de contracto, são velhas, e imaginando-as dentro de uma panela em ferro-fundido, nunca, nunca estarão prontas para serem comestíveis, a não ser que
(o infinito dos dias deram lugar à rapidez das palavras, quero-as escrever e estou a sentir dificuldade de imaginar-me sentado a uma secretária (digo – de madeira) com uma caneta de tinta permanente a escrever num caderno sem nome, talvez lhe coloque o nome de “Matraquilho”, Porque não? Sempre será mais agradável escrever sobre um nome, semelhante a escrever num corpo desnudo, e não saber o nome da folha de pele doirada onde se escreve, “onde se lê folha de pele doirada, o escritor quer dizer PÉTALA DE ROSA ABANDONADA”, e claro, é como beijar os lábios mais belos do Céu e desconhecer o nome desses lábios, todos têm um nome, uns são de filigrana, outras são de marijuana, outros..., o nome, por favor, insira a moeda na ranhura, e rode a alavanca, e logo em seguida tem o seu desejo concretizado, e melhor do que fazer pipocas, porque essa ideia já é tão velha como o apelidado de “cagar”, porque quase há trinta anos que vejo os ciganos nas feiras a venderem pipocas, e como dizia um professor meu na Universidade, tudo em engelharia já foi inventado, ou quase inventado, neste momento a sabedoria está em descobrir novos e mias económicos materiais, portanto, neste momento é na ciência de materiais que está a sabedoria, porque de equações quase que estamos conversados, esta agora... Pipocas..., ele há cada um)
A não ser que a minha amiga que vive na cabana a seguir à ribeira tenha uma porção mágica para transformar galinhas velhíssimas em novas, com coxas, com lábios, com seios, comestíveis
(o rio enfureceu-se comigo, entrou-me em casa e destruiu-me todos os papeis e livros, e eu não percebendo se estava a sonhar, e eu não percebendo se estava a dormir, apenas recordo-me de dizer – Felizmente, felizmente que alguém fez alguma coisa e destruiu-me esta porcaria sem cheiro, semelhante a rodas de chocolate, parecidas com bolachas de madeira – E logo eu, eu meu querido, logo eu que sou apaixonadíssimo por rios e barcos, logo eu)
Comestíveis saudáveis, comestíveis como folhas de alface – quando a parede ínfima que separa a saudade da vontade de regressar, há uma brecha na parede ínfima onde me é permitida a entrada, e mesmo sendo apenas ao Sábado, eu entro, e fico lá, a olhar os pedaços de loiça que sobejaram da catástrofe que as madrugadas sem destino provocaram na melodia que junto à noite ouvíamos, provavelmente, da casa do vizinho, mas ao longe, um senhor de barba, todos os finais da tarde, saboreava o seu trompete, e eu, uma criança curiosa, inventava palavras para justificar aqueles sons, que ainda hoje oiço, cerro os olhos, e a música flui em mim como o vento quando enrola os lençóis pendurados no estendal perdido no quintal, lá, misturam-se couves, cebolas, tomates, feijão-verde, alhos e algumas galinhas em processo de rescisão de contracto, são velhas, e imaginando-as dentro de uma panela em ferro-fundido, nunca, nunca estarão prontas para serem comestíveis, a não ser que – e dizem-me que amanhã é outro dia, claro, compreendo perfeitamente minha querida senhora, mas... E no Sábado?
(não sei o que são Primaveras)
Grades de sombra
(havia silêncios misturados nos sons do trompete do homem de barba, recordo-me agora, que era branca, tipo – Pai Natal? - Ora aí está, tal e qual, isso mesmo, e na altura eu sentava-me em frente à porta de entrada, uma casa simples, descomplexada, onde os aposentos de serem tão minúsculos quase que abria os braços e atravessava o quarto, entrava na casa da vizinha, e tirando isso – éramos felizes – e aqueles sons habitam hoje dentro do meu corpo, ainda hoje, sento-me em frente à porta de entrada da cabana onde habito, e apesar de não ser a mesma casa e de não ser o mesmo local, consigo ouvir os sons melódicos do trompete do senhor com barba branca, talvez do tempo, talvez da idade, talvez dos versos...)
E o teu corpo prisioneiro em grades de sombra, num castelo de areia, tão alto, tão alto, que é quase impossível alguém subir, subir – se ao menos soubesses voar! - Pois, mas infelizmente não sei voar, pois, mas infelizmente tenho medo que a areia ceda, e se transforme em grãos como bolas e sabão quando éramos crianças e andávamos pelas ruas do bairro a lançar bolinhas para a atmosfera, hoje, ainda as vejo, às vezes, a atravessarem o horizonte entre voos rasantes e lentidão de saliva, e o teu corpo lá, lá, lá...
(A não ser que a minha amiga que vive na cabana a seguir à ribeira tenha uma porção mágica para transformar galinhas velhíssimas em novas, com coxas, com lábios, com seios, comestíveis – Depois de amanhã é Sábado – e mesmo assim talvez não seja este Sábado que vou conseguir entrar através da brecha da parede ínfima que separa a saudade da vontade de regressar – só se as comermos assim, mesmo assim, duras)
Lá, na rua onde vivemos, aprisionado a grandes de sombra, e lá – Lá o quê? - lá bem no alto a entrada no castelo para chegar à cela invisível onde ela come e dorme e vive... e dizem que ama.

(quase ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Porta do Silêncio

foto: A&M ART and Photos

A última bebida da noite disfarçada de palavras
simples duas pedras de sílabas
e uns singelos lábios
como se a noite continuasse a viagem até à ilha dos livros
atravessando a porta do silêncio,

Tenho dentro de mim
o teu espelho de infância onde te olhavas e brincavas
e às vezes te esquecias de adormecer
de tanto te olhares
e de tanto o teu corpo crescer,

O fim da história
do livro e do poema e da vida
sempre o derradeiro fim como a encerrada solidão
sem que a mão humana consiga abrir as janelas do sonho
como fazem os peixes quando descem ao fundo do rio,

O fingimento da felicidade
dos sorrisos falsos em falsos lábios de falsas cabeças
a dor quando o corpo transpõe a fronteira da loucura
e se vai sentar no banco de uma enfermaria com plátanos encarnados
e olhos azuis embrulhados em gotinhas de água,

Tudo à minha volta é falso
o dia e a noite e a liberdade e a Primavera que só existe em literatura
o falso amor com falsos sorrisos em falsas dores
com falsos juízos
mas tudo tudo é cor que dorme na tela do sofrimento...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 3 de abril de 2013

A Catedral dos cigarros sem filtro

foto: A&M ART and Photos

(terça-feira de Abril)

Lembras-me a Catedral dos cigarros sem filtro
com as suas quatro janelas de acesso ao inferno,
lembras-me a luz desperdiçada pelas frestas do desejo
sabendo tu que lá fora há uma boca com fome,
de braços abertos, e agarrado à pernada da árvore junto ao cemitério,

Não cessa de chorar
nem entra na escuridão enquanto não se alimentar,
não acreditas nos plátanos sobre os bancos de madeira
que o jardim da Vila esconde, e te sentavas, como uma flor de livro na mão,
não cessam nunca, essas bocas, às vezes, poucas e loucas,

Às vezes
triângulos de tédio abraçados a cubos de gelo,
às vezes, às vezes sinto-me a caminhar sobre o Tejo,
sou uma gaivota ou um velho cacilheiro,
às vezes, sou eu mesmo, um velho desiludido, um velho sentado no infinito do abismo...

Às vezes, visto-me, sim, também me visto e lavo e tenho higiene,
como estava dizendo, às vezes, visto-me de ponte iluminada pelo teu azul
que suspendes no teu corpo de texto ficcionado,
às vezes, minto-te dizendo-te que estou bem alimentado,
mas não estou, porque estou cansado, ou... porque... apenas me apetece dizer-te que sim,

Que comi as bolachas e bebi o leite com chocolate,
que fumei cigarros imaginados, porque deixei de fumar,
que, às vezes, (isto só para nós) não me apetece sorrir nem falar nem escrever,
e escrevo, sem o saber, sem perceber porque o faço...
porque às vezes, às vezes o que eu queria era voar, e deixar de ter ossos e olhos verdes...


(permita-me reflectir sobre os seus lábios, sabendo que não me pertencem, mas como é usual vê-los passear em frente à estação de Cais do Sodré, tenho a dizer-lhe a si e a eles – Lábios, que a minha vida melhorou significamente após o encontro entre os meus olhos verdes e os seus lábios azuis, de tal forma, que hoje, terça-feira, posso garantir-lhe que nunca mais me doeram as costas, a rótula do joelho esquerdo, e melhor ainda, a dor que sentia na perna direita, essa, desapareceu como desapareceram as moedas de Euro que me acompanhavam na algibeira, mas aí, a responsabilidade não é da menina, nem tão pouco da cor da sua pele, apenas deve-se
- à má gestão do meu misero dinheiro,
um dia quis ser bailarino, depois, costureiro, nunca dancei, mas garanto-lhe que cheguei na infância, e tenho como testemunha a minha querida mãezinha, a desenhar vestidos e a confeccioná-los, e tão giros que ficaram... tinha um boneco, a que parvamente o apelidava de chapelhudo, servia-me de modelo, e amigo, confidente, e personagem de texto não escrito, apenas falado entre mim e as pombas e as galinhas, e tudo isto, num enorme quintal, em Luanda, debaixo das mangueiras, tínhamos um portão de entrada, em ferro, que dava uma certa coloração – Não filha, não é ao seu corpo! - ao bairro, estava a falar do Bairro Madame Berman, claro, claro que quando chovia ficava encerrado em casa a desenhar com carvão nas paredes do corredor, quarto e casa de banho, e não me perguntes porque o não fazia nas paredes da sala, não o sei explicar,
- e hoje não me parece terça-feira,
e quando te falava no portão de entrada, claro minha filha, referia-me à chegada do avô Domingos, coitado, tão cansado de andar pelas ruas da cidade com um cordel a puxar um machimbombo, abria-o – sim filha, o portão, o que querias que fosse – voltava a fecha-lo, pegava-me ao colo, e, e dava-me um beijo,
- hoje?
amanhã, talvez me recorde,
- e nunca mais soube a cor do céu e vi o sorriso do mar.)


E deixei de amar, ser novamente a criança com os calções e as sandálias de couro,
não pensar em livros, em termodinâmica ou mecânica, ou literatura, ou amor,
e deixei e desaprendi que o teu corpo reabsorveu o azul do céu e o sorriso do mar,
e..., que as árvores (não vais acreditar) que as árvores, agora, pensam como nós,
e que amam, como nós, não hoje, mas quando ontem era ontem, e não terça-feira...

(não revisto, ficção)
@Francisco Luís Fontinha

De pedra os rios da saudade

foto: A&M ART and Photos

Não me digas que os rios são de pedra, porque, não o são, não, não me digas que a fome é invisível, porque, não o é, não, não me digas que o teu corpo é inacessível, como uma janela altíssima, quase junto à lua, porque eu não acredito que ele esteja tão longe de mim, não
(é atarde ainda para pegar na tua mão)
Não, não acredito, e por favor, não me digas que a chuva são as lágrimas de Deus, porque, não o são, não, não
(imerso nas profundezas da tristeza que a tarde aproxima com a ajuda do vento, imerso nos cabelos das nuvens sabendo que não existem nuvens, e pergunto-me, o que tenho eu nos meus lábios? Qualquer coisa estranha e parecida com os cabelos de um ser humano, com esqueleto e na boca sinto-lhe pequenos orifícios, cavernas melhor dizendo, e escrevendo, e dizem-me que não podem ser lábios porque não existem lábios nas nuvens, E, E se não foram nuvens que o vento trouxe? Que trouxe então o vento? E se em vez de tristeza, não, não são profundas nem tristes..., E se forem? E se a água da chuva forem as lágrimas de Deus?)
Não, Não o são, porque se o fossem, eu saberia, não, não me digas que hoje é terça-feira, porque não o é, porque se o fosse, eu, eu estaria completamente quilhado, pois era hoje que partiria para a eterna viagem de barco para o longínquo
(de pedra, os rios?)
Oh minha querida, como poderiam ser de pedra os rios..., como caminhavam os barcos no interior das pedras? Não, não o são, não...
(e o mar, meu querido?)
Não, não acredito, e por favor, não me digas que a chuva são as lágrimas de Deus, porque, não o são, não, não, e no entanto é tarde e eu sem entrar em casa, e no entanto caminho sobre um rio que se tu não estivesses ao meu lado, juro, com medo que me oiças, dir-te-ia que o rio onde caminho é de pedra sim, sim o é, mas não o digo, para não o ouvires, porque vais logo dizer
(VÊS COMO EU TINHA RAZÃO!)
E, não, não a tinhas,
(de pedra, os rios?)
Não a tinhas e nunca a tiveste, aparecias-me como se eu fosse o teu canino de estimação, colocavas-me uma gravata de plásticos, um pouco comprida diga-se, e pegavas em mim e levavas-me para o jardim em frente à nossa casa, um sexto andar em ruínas, sem elevador, com alguns dos degraus completamente embriagados pelo silêncio e pela escuridão, não tínhamos luz, e quando forçado a erguer-me do chão e subir até ao tecto do céu, três degraus depois, estava a cerca de seis degraus do local de partida, assim
(não, não)
Tão pequeninos, assim tão próximos dos alicerces fortificados pelas mãos calejadas quando pendurávamos o cigarro na beirinha da grade da varanda, e
(já agora vais dizer-me que os barcos são de papel, não?)
Não, não, e, quando percebíamos... o cigarro com a ajuda do vento e da lei da gravidade, pumba... mesmo no centro do capô do automóvel estacionado na rua, coitado dele, e um deslumbre cinzento começava a erguer-se, e a erguer-se, até que acabou por desaparecer, eu tremia, o medo que ele se incendiasse, eu quase que me lancei da varanda para mais depressa conseguir resolver aquilo que o vento tinha provocado, e não me lancei e o automóvel não ardeu, E será que o vento apenas trouxe nuvens com cabelos e cavernas? Mas, tu não acreditas em nuvens com cabelos e cavernas!
Tão pequeninos, assim tão próximos dos alicerces fortificados pelas mãos calejadas quando pendurávamos o cigarro na beirinha da grade da varanda, e
(já agora vais dizer-me que os barcos são de papel, não?)
E neste momento acredito que os cigarros inventem dores de cabeça na copa das árvores, porque se assim não o fosse, os pássaros fumavam, os frutos fumavam, as folhas fumavam, a chuva que dizes ser as lágrimas de Deus, fumavam, e como sabes, não fumam...
Árvores, pássaros, frutos, folhas, ou mesmo, como tu gostas de o dizer, as lágrimas de Deus, aquelas que ultimamente não nos largam, dia e noite, já não bastava não termos luz, água canalizada ou gás, ainda temos o problema do telhados, como qualquer coisa relacionado com bicos de papagaio, e claro, entra-nos as lágrimas sobre os cobertores embrulhados em insónias e soluços de Carnaval, aparentemente, desisto de construir um lugar seguro, eterno, com os rios de pedra, porque a tua teimosia, porque a falta de cigarros
(VÊS COMO EU TINHA RAZÃO!).

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha