No quarto ao lado, o
senhor Álvaro de Campos preocupado com o Esteves à porta da Tabacaria e com a
pequena se come ou não come os chocolates, porque comer chocolates é a melhor
coisa do mundo; metafisica pura.
No meu quarto, nada.
Nem o Esteves à porta da
Tabacaria, nem a pequena a comer chocolates, no meu quarto apenas tenho uma
jarra com flores, flores muito velhas, flores sem nome, flores…
No meu quarto, ao lado do
quarto do senhor Álvaro de Campos, em frente à Tabacaria, vejo-me no espelho do
guarda-fatos, e não vejo nada, nem vejo o mar, nem vejo os filhos do mar e os
irmãos do mar e os irmãos dos filhos do irmão do mar, no meu quarto, este
quarto, oiço o senhor Álvaro de Campos,
oiço-o e percebo que do outro lado da rua, da minha rua, rua que nunca tive,
porque nunca tive uma rua na minha vida, percebo que na minha rua há um gato, o
Alfredo, um gato negro com uma estrela branca no peito, neste quarto, no meu
quarto, o Alfredo olha-me e eu olho-o, e a única diferença entre o Alfredo e o
crucifixo pendurado na parede, é que ambos gostam de mim; ao menos isso.
No quarto ao lado, neste
quarto, este meu quarto, tenho sentado na cama um Pacheco descontente com a
vida, descontente com o senhor Álvaro de Campos, descontente com todos os
chocolates e com todas as pequenas que comem chocolates; quer lá saber o
Pacheco dos chocolates do senhor Álvaro de Campos, enfim sós, ambos, os dois,
os três, os quatro, nada.
No quarto ao lado do
senhor Álvaro de Campos, o meu, o meu quarto, há uma janela virada para o
Oceano, uma janela de sono, uma janela com lábios de espuma e nos olhos traz as
estrelas deitadas fora pelo senhor Álvaro de Campos, coitado, coitado dele e de
mim, coitado…
Poiso a cabeça no teu
beijo, deixo-me ficar por lá e por cá, levanto a cabeça, poiso a cabeça sobre o
teu seio direito, não porque o teu seio direito seja mais belo de que o teu
seio esquerdo, mas porque o teu seio direito está perto da janela virada para o
Oceano, beijo-o ferozmente, beijo-o como se apenas tivesse segundos de vida e
fosse esta a minha despedida, depois abro a janela, lá fora começa a erguer-se
o nosso último pôr-do-sol, pego nele, prendo todos os barcos ao pôr-do-sol,
depois, depois acaricio o teu seio esquerdo, e puxo todos os barcos para este
pobre quarto, ao lado do quarto do senhor Álvaro de Campos.
O Pacheco está cá, não se
importa se eu beijo o teu seio direito, não se importa se eu acaricio o teu
seio esquerdo e tão pouco se puxo todos os barcos para dentro do quarto.
Tão pouco se importa se
eu poiso a cabeça no teu beijo, quer lá saber o Pacheco do teu beijo…
Abro as gavetas que há em
mim, deito lá os barcos e adormeço-os; tão felizes que eles estão, tão felizes,
meu amor.
Beijo o teu ventre, e com
o rio que trago nas mãos, um rio sem nome e muito pequenino, escrevo todas as
palavras do amanhecer,
Coitado, coitado do
senhor Álvaro de Campos, coitado,
E não sabíamos que o
crucifixo nos olhava.
Coitado do Pacheco, coitado…
Tão tristes, tão tristes
estes barcos dentro das minhas gavetas, muitas, poucas, gavetas, gavetas onde
escondo o silêncio do décimo terceiro andar.
Desenho no teu peito,
desenho no teu peito um quadrado, um círculo, desenho no teu peito a primeira
manhã de Inverno, na terceira rua, vire à esquerda, à esquerda do teu seio
direito, uma nuvem, um silêncio, o beijo que se esquece no teu doce seio
direito.
À porta da Tabacaria, o
Esteves, coitado do Esteves. Coitado.
Coitado de mim.
Coitado do Pacheco.
Coitado dele.
Coitado de mim.
E coitada da pequena que
tem de comer os chocolates. Coitada ela.
Coitado de mim.
Coitada.
Coitada dela.
Um grito. A voz
alicerça-se às tuas mãos, mãos finas e débeis, mãos de árvore ensonada, mãos
que também elas, também elas, elas gritam, gritam, gritam como gritam os teus
uivos nas vidraças desta janela, e sabes meu amor, vivemos neste complexo Universo
criado por Deus, Deus todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e
invisíveis, pai do Alfredo, que num ápice resolveu descansar ao Domingo, mas ao
Domingo já não há descanso de pessoal, ao Domingo, que o Domingo seja a
primeira canção da manhã.
Poderia ser, não o é, mas
enquanto o teu seio direito é loucamente beijado, os meus lábios caminham em
direcção ao sono. Fumo um cigarro. Olho-te nua, perdida nas minhas mãos… e
todos os corpos ressuscitam ao terceiro dia.
Nos dedos, finos, magros,
na ponta dos dedos uma gaivota, uma árvore, os suspiros do senhor Álvaro de
Campos, os gritos do senhor Pacheco, gritos, gritos, urros, gemidos, porra, foi
bom, foi maravilhoso, um poema, um adeus.
E enquanto a pequena come os chocolates, tu,
meu amor, tu escondes-te também, tal como os barcos, numa das gavetas que há em
mim.
Coitado do senhor Álvaro
de Campos.
Coitado do Pacheco.
Coitada da pequena que
deixou de comer os chocolates.
Coitados.
Coitado de mim e do
crucifixo que sempre nos olhou; tenho pena…
E o que pensará este crucifixo
enquanto beijo o teu seio direito?
Alijó, 15/01/2023
Francisco Luís Fontinha
(ficção)