domingo, 15 de janeiro de 2023

Coitado do Alfredo

 No quarto ao lado, o senhor Álvaro de Campos preocupado com o Esteves à porta da Tabacaria e com a pequena se come ou não come os chocolates, porque comer chocolates é a melhor coisa do mundo; metafisica pura.

No meu quarto, nada.

Nem o Esteves à porta da Tabacaria, nem a pequena a comer chocolates, no meu quarto apenas tenho uma jarra com flores, flores muito velhas, flores sem nome, flores…

No meu quarto, ao lado do quarto do senhor Álvaro de Campos, em frente à Tabacaria, vejo-me no espelho do guarda-fatos, e não vejo nada, nem vejo o mar, nem vejo os filhos do mar e os irmãos do mar e os irmãos dos filhos do irmão do mar, no meu quarto, este quarto,  oiço o senhor Álvaro de Campos, oiço-o e percebo que do outro lado da rua, da minha rua, rua que nunca tive, porque nunca tive uma rua na minha vida, percebo que na minha rua há um gato, o Alfredo, um gato negro com uma estrela branca no peito, neste quarto, no meu quarto, o Alfredo olha-me e eu olho-o, e a única diferença entre o Alfredo e o crucifixo pendurado na parede, é que ambos gostam de mim; ao menos isso.

No quarto ao lado, neste quarto, este meu quarto, tenho sentado na cama um Pacheco descontente com a vida, descontente com o senhor Álvaro de Campos, descontente com todos os chocolates e com todas as pequenas que comem chocolates; quer lá saber o Pacheco dos chocolates do senhor Álvaro de Campos, enfim sós, ambos, os dois, os três, os quatro, nada.

No quarto ao lado do senhor Álvaro de Campos, o meu, o meu quarto, há uma janela virada para o Oceano, uma janela de sono, uma janela com lábios de espuma e nos olhos traz as estrelas deitadas fora pelo senhor Álvaro de Campos, coitado, coitado dele e de mim, coitado…

Poiso a cabeça no teu beijo, deixo-me ficar por lá e por cá, levanto a cabeça, poiso a cabeça sobre o teu seio direito, não porque o teu seio direito seja mais belo de que o teu seio esquerdo, mas porque o teu seio direito está perto da janela virada para o Oceano, beijo-o ferozmente, beijo-o como se apenas tivesse segundos de vida e fosse esta a minha despedida, depois abro a janela, lá fora começa a erguer-se o nosso último pôr-do-sol, pego nele, prendo todos os barcos ao pôr-do-sol, depois, depois acaricio o teu seio esquerdo, e puxo todos os barcos para este pobre quarto, ao lado do quarto do senhor Álvaro de Campos.

O Pacheco está cá, não se importa se eu beijo o teu seio direito, não se importa se eu acaricio o teu seio esquerdo e tão pouco se puxo todos os barcos para dentro do quarto.

Tão pouco se importa se eu poiso a cabeça no teu beijo, quer lá saber o Pacheco do teu beijo…

Abro as gavetas que há em mim, deito lá os barcos e adormeço-os; tão felizes que eles estão, tão felizes, meu amor.

Beijo o teu ventre, e com o rio que trago nas mãos, um rio sem nome e muito pequenino, escrevo todas as palavras do amanhecer,

Coitado, coitado do senhor Álvaro de Campos, coitado,

E não sabíamos que o crucifixo nos olhava.

Coitado do Pacheco, coitado…

Tão tristes, tão tristes estes barcos dentro das minhas gavetas, muitas, poucas, gavetas, gavetas onde escondo o silêncio do décimo terceiro andar.

Desenho no teu peito, desenho no teu peito um quadrado, um círculo, desenho no teu peito a primeira manhã de Inverno, na terceira rua, vire à esquerda, à esquerda do teu seio direito, uma nuvem, um silêncio, o beijo que se esquece no teu doce seio direito.

À porta da Tabacaria, o Esteves, coitado do Esteves. Coitado.

Coitado de mim.

Coitado do Pacheco. Coitado dele.

Coitado de mim.

E coitada da pequena que tem de comer os chocolates. Coitada ela.

Coitado de mim.

Coitada.

Coitada dela.

Um grito. A voz alicerça-se às tuas mãos, mãos finas e débeis, mãos de árvore ensonada, mãos que também elas, também elas, elas gritam, gritam, gritam como gritam os teus uivos nas vidraças desta janela, e sabes meu amor, vivemos neste complexo Universo criado por Deus, Deus todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, pai do Alfredo, que num ápice resolveu descansar ao Domingo, mas ao Domingo já não há descanso de pessoal, ao Domingo, que o Domingo seja a primeira canção da manhã.

Poderia ser, não o é, mas enquanto o teu seio direito é loucamente beijado, os meus lábios caminham em direcção ao sono. Fumo um cigarro. Olho-te nua, perdida nas minhas mãos… e todos os corpos ressuscitam ao terceiro dia.

Nos dedos, finos, magros, na ponta dos dedos uma gaivota, uma árvore, os suspiros do senhor Álvaro de Campos, os gritos do senhor Pacheco, gritos, gritos, urros, gemidos, porra, foi bom, foi maravilhoso, um poema, um adeus.

 E enquanto a pequena come os chocolates, tu, meu amor, tu escondes-te também, tal como os barcos, numa das gavetas que há em mim.

Coitado do senhor Álvaro de Campos.

Coitado do Pacheco.

Coitada da pequena que deixou de comer os chocolates.

Coitados.

Coitado de mim e do crucifixo que sempre nos olhou; tenho pena…

E o que pensará este crucifixo enquanto beijo o teu seio direito?

 

 

 

 

 

 

Alijó, 15/01/2023

Francisco Luís Fontinha

(ficção)


 Não pequena, não comas chocolates. Há coisa melhor no mundo de que comer chocolates…

Deus da ausência

 Do lápis negro

Carvão da ínfima linha do horizonte

Manhã que se suicida nas umbreiras do mar

Pedaço de rio

Quando na saudade

Um pequeno livro

Dentro do teu livro

Às palavras que grito

Quando o sono de inveja

Poisa no teu corpo.

 

Somo duas

Éramos três flores com espinhos

Quando a alma diz ao Diabo

Que do dia nada de bom

Porque só a noite te envenena

Na noite que te lamenta.

 

Verga-te

Deita-te dentro do sono

Quando uma laranja

Fica esquecida na tua mesinha-de-cabeceira.

 

O despertador acorda-te

Tu ergues-te

Tu vives

Enquanto dentro de ti

Em mim

Que sou eu

Morre.

 

Um docinho.

 

Poiso a cabeça

Sobre o teu peito

Teu seio direito

Beijo-o

Beijo-o porque está pertinho da janela

Da janela com vista para o Oceano

Abro-a

Beijo-o

Pego no pôr-do-sol

Ato-o a todos os barcos

Beijo-o

Puxo-os e acomodo-os no meu quarto

Volto ao teu seio direito

Beijo-o

Puxo-os

Eles dormem

Elas dormem

Morrem

Fumam

Deitam-se nas tuas coxas de incenso

E também eles

E também elas

Morrem.

 

Com o lápis escrevo

Apagas com a borracha

O que escrevo

Dos meus beijos

Às minhas mãos.

 

Grito.

Sinto-o dentro deste silêncio

Quando dentro das sanzalas

Uma criança

Pede pão

E um não

Pão

Quando o tempo

Se mata aos teus olhos

Dentro dos olhos

O querido Deus da ausência.

 

Fecho a janela

Deito a cabeça

Beijo o teu seio esquerdo

Deixo em poiso o teu seio direito…

E vou adormecer todos estes barcos.

 

 

 

 

 

Alijó, 15/01/2023

Francisco Luís Fontinha

 “come chocolates, pequena, come chocolates… olha que não há coisa melhor no mundo de que comer chocolates…”

Coitado do senhor Álvaro de Campos, como se não houvesse coisa melhor no mundo de que comer chocolates,

Olhe, por exemplo, fazer amor com a mulher que se ama, abraçar a mulher que se ama, olhar os olhos da mulher que se ama, olhar as estrelas que a mulher que se ama semeia no nosso olhar,

Coitado, coitado do senhor Álvaro de Campos,

Olhe, por exemplo, dar um tiro nos miolos aos vinte e seis anos como o senhor Mário de Sá-Carneiro,

Ou…

Tanta coisa, coisas boas, de que comer chocolates.

 

 

 

 

Alijó, 15/01/2023

Francisco Luís Fontinha

sábado, 14 de janeiro de 2023

À janela da erecção

(o autor deste blog pede desculpa aos seus leitores pelos poemas, texto e pinturas/desenhos de merda, sem nexo, que vai publicando)

 

 

Foi à janela, correu o cortinado e quando procurava um cigarro na algibeira para desassossegar as palavras que trazia aprisionadas no pequeno bolso da camisa, junto ao peito, percebeu que durante a noite alguém tinha furtado a estátua que sempre conheceu em frente à sua casa.

Quem seria o autor de tal acto, pensou ele. Quem queria ter em casa, se esta estátua depois de furtada foi transportada para uma casa, a estátua de um poeta.

Eu por exemplo, não queria.

E se ao menos fosse uma estátua de carne e osso, de uma mulher… agora uma estátua em bronze, com um tipo sentado numa pedra, segurando a cabeça para não cair devido à força da gravidade,

E no vácuo, um pedregulho e uma pena, deixados cair da mesma altura, caem ambos ao mesmo tempo.

Tal como a erecção, o poeta enforcado descobriu, enquanto da janela, além de perceber que faltava a estátua do poeta e ao longe se aproximava um grande paquete carregado de almas em desejo, o poeta enforcado descobriu que Deus não percebia nada de matemática, mas também para que Deus precisa de saber matemática se Deus não trabalha, nada faz; trabalhou seis dias, descansou ao Domingo e de lá para cá… vai andando por aí.

Correu os cortinados, foi até à secretária, sentou-se e depois de abrir o portátil começou a desenhar em palavras o poema da Erecção,

 

Erecção

 

 

Passeio os meus doces dedos

Na fina e lívida tua pele cerâmica.

Sinto nos meus dedos o sono da manhã

Que abraçados aos teus seios

Transportam o desejo em direcção à lua.

 

Passeio os meus dedos

No teu corpo,

Nos teus lábios,

E desenho no teu ventre o silêncio gemido

Das acácias em flor.

 

Passeio os meus dedos

Nas palavras que gritas,

Que gritas quando estás embrulhada

Nos lençóis do prazer;

E do teu sorriso acorda uma nova madrugada.

 

Porque Deus criou a saudade, pergunto-me enquanto olho para a janela e nela aparece a sombra cintilante da maré.

Ausento-me deste velho corpo recheado de silvas, urtigas e lágrimas de sono, ausento-me das manhãs de todos os dias e em todos os dias afogo as manhãs, das manhãs dos dias, escondo a noite nas tuas coxas e sei que a saudade sempre estará à janela.

A lareira está a morrer, como morrem todas as coisas; as visíveis e as invisíveis, as palavras, também elas morrer, também elas sofrem dentro do cubo camuflado do desejo.

A erecção acorda, ergue-se e levita nas margens cinzentas deste rio, e às vezes, a erecção do sono que desce sobre as planícies que ditam ao silêncio esconde-se na mão de Deus todo-poderoso, criador do céu e da terra, criador do pénis e da vagina, criador do silêncio e da solidão, Deus, Deus criador da maçã e que fez com que mais tarde Newton percebesse a existência da gravidade, e de gravidade em gravidade, todos os dias, todas as noites, a erecção acorda; existirá erecção no vácuo?

E a maçã?

Que tem a maçã, meu parvalhão?

Comeu-a.

Comeu-a enquanto Adão teve uma erecção.

 

(eis as merdas que escrevo, eis as merdas que faço)

 

 

 

 

 

Alijó, 14/01/2023

Francisco Luís Fontinha