Nunca vi o mar.
Se eu pudesse, desenhava
o mar nos teus olhos, se eu pudesse, escrevia o poema nos teus lábios quando
nasce o Sol, depois, subia à montanha mais alta do planeta terra e conversava
com Deus; se eu pudesse conversar com ele, não lhe diria nada, como nada digo
com quem converso.
Mas reconheço que tenho
uma certa inquietação e digamos que…
Um desejo?
Não, minha querida, não.
Mas se eu pudesse,
perguntava-lhe onde estão todos os papagaios em papel que lancei, e hoje,
brincam juntamente com ele, no céu.
Mas reconheço que tenho
uma certa inquietação e digamos que…
Medo?
Não, minha querida, não,
Sabes, nunca tive medo.
Pela manhã pedíamos
uísque, torradas e cigarros, depois, levantávamos voo sobre a cidade e só
voltávamos quando sabíamos que todos os barcos que dormiam no Tejo já tinham
zarpado em direcção ao terceiro esquerdo da rua nas floreiras adormecidas;
subíamos as escadas, cambaleando no sono invisível da madrugada, abríamos a
porta de entrada, com acesso a uma pequena divisão onde adormeciam livros,
discos e sombras e fotografias, depois abríamos a janela e da rua chegavam a
nós todos os nomes que tinham passado pelos corpos que às vezes deixávamos
junto à esplanada, o Tejo, cansado da noite, deitava a cabeça nas minhas
pernas, declamava-lhe um poema e ficávamos assim, invisíveis, até que a noite
descia sobre nós – na algibeira, cinco cêntimos de euro.
As palavras que lançávamos
contra a parede que dava acesso à varanda, e sempre que acreditávamos que
tínhamos o Sol escondido no peito, depois de bateram contra a janela, acabavam por
regressar a nós.
E se podíamos deitar fora
todas as coisas possíveis e imaginárias, às palavras, nunca o conseguimos, até
que um dia, eu e o mar, começamos a lançar da varanda, papeis escritos e
rasurados, desenhos, riscos, diversa mobília e um par de calças; e não sabíamos
que a paixão tinha tomado conta das nossas mãos, e uma noite, percebi que tinha
a minha mão entrelaçada com a mão do mar.
Medo?
Não, minha querida, não,
Sabes, nunca tive medo.
Fiquei tão feliz, olhei-o
e pela primeira vez, beijei o mar.
Um desejo? E o Tejo?
Não, minha querida, não.
A alvorada trazia a nós
todas as canções que a noite semeava num qualquer bar, numa qualquer rua, junto
ao rio. Do meu mar, aquele que nunca tive a oportunidade de olhar, escrever ou
pintar, chegavam a mim todos os silêncios que um poeta medíocre como eu,
poderia ter.
E mesmo assim, quando me
faltavam as palavras, tocava-lhe nos seios, e já com as minhas mãos nas suas
coxas poéticas que apenas a noite consegue descrever (eu nunca serei capaz de o
fazer), deixava sobre a sua pele o mais belo poema de amor.
Acusaram de homem louco. Acusaram
o poeta de medíocre, e hoje vende versos ao domicílio com a promoção de leve dois
e pague um. E não é preciso adivinhar o resultado, quando ninguém consome
poesia nos dias de hoje; a fome.
O desejo invadia-nos
naquele apartamento e no terceiro esquerdo da rua nas floreiras adormecidas, eu
e o mar, escrevíamos no pôr-do-sol as lágrimas das manhãs que teimavam em regressar
sempre ao teu púbis, como se este, ao contrário das ruas e de todos os
esconderijos da cidade, fosse o único lugar do planeta terra onde poderia
encontrar Deus; e ele, nunca me quis ouvir.
Um desejo?
Não, minha querida, não.
E a paixão habita neles
como habitam em mim os papagaios que fazem companhia a Deus, nos céus de
Luanda.
Alijó, 28/11/2022
Francisco Luís Fontinha
(ficção)