Meu querido,
Não sei como serias hoje,
tão pouco se gostavas de Proust, e se mergulhaste “Em Busca do Tempo Perdido”
ou “À sombra das Raparigas em Flor”, não sei, se tal como eu, enquanto a noite
desce sobre mim, pensas como seria adormecer no colo de AL Berto ou estares uma
tarde inteira a fumar cigarros com o Lobo Antunes ou como seria o rosto do
Pacheco enquanto esgalhava uma.
Não sei, nem quero saber.
Também não espero pedir-te perdão, porque o que está feito está feito e, se
tivesse de pedir perdão a alguém, pedia-o certamente a mim, evidentemente.
Cansei-me muito, foram
noites intermináveis e sem dormir, foram noites de ti enquanto eu pensava em
mim, e quando percebi que jamais voltaria a ver os pássaros em pequenos voos de
miséria, eis que esses mesmos pássaros voltaram para me atormentar e invadir
novamente as minhas noites; não, meu querido, tu não tens culpa que as nuvens
tenham regressado novamente.
Não sei o que pensaria
Albertine de tudo isto, mas certamente pensaria o mesmo que eu, isto é, não
pensava; talvez um dia percebas porque morreram os jardins da minha vida.
Naquela altura, meu
querido, desconhecia o poder do fogo, porque a lareira onde me abrigava
pertencia às manhãs submersas dos encalhados campos de milho de Carvalhais, e
se pudesse estar sentado naquela pedra cinzenta, e se pudesse enquanto sentado
fumar os meus últimos cigarros da tarde, e se pudesse olhar o Pacheco a esgalhar
uma, à porta de uma qualquer casa de banho de um qualquer bar, acredita meu
querido, fazia-o, mas não o posso fazer.
E como já te disse
anteriormente, sim, cansei-me muito. Sim, chorei imenso. E sim, fui energúmeno
para ti.
Mas… meu querido, como
seria a madrugada se o vento tivesse morrido naquela noite fatídica em que
voaste para o infinito; e talvez um dia, e talvez agora, te diga que foi melhor
o vento não morrer.
Enquanto converso com a
Adelina ou com a Maria Clara, percebo que fui um sacana para ti, mas depois regressam
a mim as lágrimas infindáveis das três tristes serpentes sem cabeça, e quando
converso com a Albertine penso como seriam os teus olhos; possivelmente iguais
aos meus.
Mas os teus olhos um dia
pertencerão às flores em cadáver que brincam no meu jardim, e pensando melhor,
também não quero saber dos teus olhos, nem a cor dos mesmos.
Sabes Swann, tanta gente
a quem tinha de pedir perdão, mas o tempo escoa-se pelas frestas da noite, e
quando percebo que tenho sobre o corpo a espada da tristeza, oiço as vozes
alegres dos monstros das noites em que te sentavas no meu colo enquanto te lia
um poema de AL Berto, e do 14 de Janeiro, hoje, apenas tenho saudade de quando
o mar entrava pela janela, e tu, sonhavas com as marés de silêncio que caiam
sobre a mesa da sala de jantar.
Na algibeira levávamos os
pregos sem cabeça, sem braços, apenas um corpo mortificado e doente, depois, tínhamos
as Pachecadas que alimentavam as nossas tardes depois de voarmos sobre uma cama
de nódoas num qualquer segundo andar, num qualquer quarto, de uma qualquer
cidade.
E sabes, Albertine, depois
da morte apenas ficam as fotografias.
Mas tu não percebes,
claro que nunca vais perceber porque o fizeram; acredita que nem eu percebo
porque não mataram o vento naquela triste madrugada.
Pertenço-te e não te peço
perdão, de qualquer forma, o vento ainda ronda pelos campos de milho de
Carvalhais.
E depois de levar o
almoço à tia Adosinda, ela carinhosamente, dava-me dois e quinhentos ou cinco
escudos, descia a rua, estacionava no Sr. Grifo e mergulhava nas carteiras de
cromos ou nos chocolates.
A tarde separa-se das
tuas mãos e da janela ouvem-se as crianças em pequenas brincadeiras, sobre o
meu peito, poisas a cabeça, e num ápice, tal como o vento que não morreu
naquela madrugada, percebemos que somos instantes, instantes num quarto de
vento.
E não, não te peço
perdão.
Nunca te vou pedir
perdão.
Alijó, 22/10/2022
Francisco Luís Fontinha
(ficção)