sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Fotografia para o inferno

 Os sonhos são pedacinhos de rocha

Suspensos num rio sem nome,

São pequenas janelas gradeadas

Com fotografia para o inferno,

Os sonhos são papel

 

Amarrotado,

Os sonhos são silêncios,

São… rios sem nome,

Os sonhos são enxadas em revolta,

São um calendário de equações diferencias,

 

Os sonhos são papel-higiénico,

São a flor parvalhona que um parvalhão aprisiona na lapela,

São cordas de nylon,

São corpos mutilados pela guerra,

Os sonhos são janelas gradeadas,

 

São sótãos,

Filhos, filhas, mar, ar, nada…

Os sonhos são solidão,

São madrugadas,

São noites sem destino,

 

Os sonhos são as crianças,

Uns tem-nas, outros…

Inventam o sono na alvorada,

Os sonhos são as abelhas,

Porque os sonhos são pedacinhos de rocha…

 

 

 

Alijó, 23/09/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Todos os dias

 Todos os dias,

Estas tristes janelas se encerram,

E o sol…

Esconde-se nos arbustos do cansaço,

Todos os dias,

Há luar na minha noite,

Todas as noites,

Há palavras nos meus tristes lábios,

Todas as horas,

Todos os dias,

A solidão dos dias,

A solidão das horas,

Quando um velho relógio

Se esconde na alvorada,

Um transeunte invade o jardim do sonho…

E as minhas acácias morreram de saudade,

Todos os dias,

Dias em pequenos voos sobre o mar,

Todas as horas,

Todas as palavras,

Todos os dias em delírio…

Nas nuvens encarnadas,

Depois,

O sangue laminado

Jorra na planície do medo,

As janelas encerradas,

A padaria fora de serviço,

O café amargo…

Entre dias,

Depois dos dias,

Nas horas sem dias…

E pergunto-me

Quando acordam os cisnes do teu olhar,

Sabendo que todas as janelas,

Todas as horas,

Todos os dias,

Minutos,

Segundos de nada…

Deste calendário envenenado,

ENCERRADO.

 

Alijó, 22/09/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 18 de setembro de 2022

Palavra semeada

 Um dia serás livro,

Palavra semeada na planície do sono,

Um dia serás madrugada,

E no outro dia…

Não serás nada,

 

Um dia serás cidade

Esfomeada,

Solidão nocturna,

Um dia serás nuvem,

Madrugada,

 

Um dia serás luar,

Noite estrelada,

Um dia serás livro

Na mão ceifada,

Um dia serás rio,

 

Mar em revolta,

Um dia serás livro,

Palavra na palavra,

Um dia serás o sol

Quando os barcos dormem,

 

Um dia serás livro,

Rainha da montanha adormecida,

Um dia serás os beijos

Das noites não dormidas…

Um dia… serás livro de poesia.

 

 

 

Alijó, 18/09/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 17 de setembro de 2022

Mão granítica

 Nesta mão granítica

Escondo o feto prometido,

Escrevo ao feto prometido

As palavras que um dia o meu pai me escreveu…

E que eu nunca tive a coragem de ler,

 

Com esta mão granítica

Pinto as tardes de Luanda,

Quando um paquete esfomeado

Poisava no meu peito,

Como se a criança que eu era

 

Deixasse de o ser…

Porque a criança que fui,

Hoje… é um pequeno verme de Inverno.

Nesta mão granítica

Escondo o feto prometido,

 

E aproveito para encerrar as janelas da solidão.

Com esta mão granítica

Disparo as balas da saudade,

Que acabam por adormecer no mar…

E sempre que uma criança chora

 

Esta mão granítica

Revolta-se contra a madrugada.

Com esta mão granítica

Escrevo ao feto prometido

Os poemas das tardes junto à baía de Luanda…

 

 

Alijó, 17/09/2022

Francisco Luís Fontinha

Grito

 

Este rio sufoca-me,

Entranha-se-me no peito,

Alimenta a lança que transporto desde a infância,

Que me deixa sem jeito,

Que me provoca demência,

 

Este rio assassina-me,

Corre-me na mão,

Este rio mata-me, este rio é manhã cansada,

Este rio é solidão,

Este rio sufoca-me na madrugada,

 

E quando olho as estrelas,

Este rio é silêncio em pedacinhos de mel,

Este rio é saudade,

Este rio é batel

Contra os rochedos da liberdade,

 

Este rio sufoca-me,

Rouba-me todas as palavras de escrever,

Este rio é luar…

Este rio é o amanhecer

Quando me deito sobre o mar,

 

E de longe vem a mim este rio que me sufoca,

Deste rio que me viu nascer,

Este rio é arte suspensa num pequeno olhar…

Quando a chuva se despede da vida sem querer,

Este rio é a minha alma, este rio é o meu gritar.

 

 

Alijó, 17/09/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

O sono

 Invento o sono,

Invento as palavras que me acompanharão

Quando eu for um barco em pequenos voos sobre o mar,

Invento o sono,

Invento as imagens lapidadas e que poisam sobre o meu corpo,

E sem que eu perceba,

Trago ao pescoço uma corrente invisível…

De muitas palavras.

 

Invento o sono,

Sabendo que transporto nas mãos

A caneta assassina das manhãs de poesia,

Invento o sono,

Porque percebi que da noite alimento as minhas dores,

Sabendo que amanhã chove,

Que amanhã uma criança com fome

Irá para a escola carregando uma mochila sonâmbula

 

E prisioneira das pequenas lágrimas de saudade,

Invento o sono,

Queimo todas as fotografias,

Semeio sobre a tua sombra

As lâminas do desejo,

Invento o sono,

Enquanto sobre a mesa da sala…

Uma pilha de livros se despede de mim.

 

Invento o sono,

Invento o prazer carnívoro dos cinzentos pássaros

Que desde a minha infância habitam no meu peito,

Invento o sono,

Puxo de um cigarro,

Disparo a bala de prata que os teus olhos escrevem na maré…

Invento o sono,

Não percebendo que vivo, não percebendo que respiro… inventando o sono.

 

 

 

Alijó, 16/09/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

O que pensas da paixão, em dias de chuva, minha querida?

  

Descem sobre mim as lágrimas do Céu; percebo que transporto no olhar o pequeno silêncio da manhã e sempre que me descuido, um pedacinho de tristeza se alicerça ao meu peito. E as palavras parecem balas disparadas pela espingarda do desejo.

O que tem paixão em comum com as lágrimas do Céu, meu querido?

Talvez tudo. Talvez nada. Sabias que dentro da paixão existe uma equação sem resolução?

Não. Não sabia, meu querido.

E que a paixão tem vida, tem nome, tem sexo, idade, religião…

És parvo, meu querido.

E que Deus não sabe matemática?

Parvo, parvo, parvo…

Tenho medo da tua mão silenciosa, tenho medo dos teus olhos em profunda tristeza, quando ambos sabemos que dentro de ti habitam as mais lindas recordações de uma infância pincelada pelas marés em cio. Onde anda aquele menino dos calções que se deliciava a olhar o mar e os barcos e a areia branca do Mussulo?

Vive dentro de um álbum de fotografias a preto e branco… e dizem que voa sobre um rio curvilíneo embrulhado em socalcos de medo.

A paixão, meu querido, é o silêncio entre dois olhares e separados por duas rectas paralelas…

Mas duas rectas paralelas encontram-se no infinito, minha querida…

Pois… não sei o que diga.

Imagina dois olhares suspensos na manhã

Sim, estou a imaginar.

Imagina que sobre esses dois olhares, em pedacinhos de mel, descem as lágrimas do Céu

Sim, consigo imaginar.

Imagina agora, meu querido, que esses dois olhares têm um corpo, têm desejos, têm mãos que se entrelaçam nos lábios do mar

Sim, minha querida.

E esses olhares e esses corpos e essas mãos e esses desejos… voam sobre o mar pincelado de beijos, enquanto no peito desses dois olhares, sem que alguém perceba, há um triângulo rectângulo em que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos e

Não percebo, minha querida.

E descem as lágrimas do Céu sobre mim…

Não. Não sabia, meu querido.

E que a paixão tem vida, tem nome, tem sexo, idade, religião…

És parvo, meu querido.

E que Deus não sabe matemática?

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 15/09/2022

(Ficção)