domingo, 20 de outubro de 2019

Corpo de geada


(para ti, meu amor)

 

 

Tenho na mão um punhado de areia.

Tenho dentro de mim uma jangada de saudade,

Que navega no teu peito, meu amor.

No silêncio uma camuflada veia,

Onde escrevi liberdade,

Das palavras lágrimas de uma flor.

Tenho no corpo a lápide, a estonteante dor.

Tenho na mão um punhado de areia.

Uma caravela indesejada,

Que vagueia…

E semeia,

No meu corpo a geada.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 20/10/2019

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A enxada da vida


Que te direi,

Se nada tenho para te dizer.

Que farei com estes livros,

Sós,

Abandonados…

Sonhei,

Uma noite,

Que os queimei.

E juntamente com eles, todos os meus fantasmas na fogueira.

Não.

Não chorei.

Nesta casa é expressamente proibido chorar.

Nesta casa é expressamente proibido falar em mar.

Porque esta casa é uma sombra esquecida na calçada.

Pedaços de alvenaria engripados,

Sempre em ternos espirros.

Que te direi,

Hoje,

Amanhã!

Porque amanhã,

Serei,

Um pedaço de xisto descendo socalcos até ao rio.

Amanhã serei barco, caravela… jangada.

Perdida,

Achada,

Na enxada da vida.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

18/10/2019

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

A casa


Sabes, meu amor,

Esta casa tornou-se gélida, inabitável, e deixei de ouvir vozes.

Esta casa parece o abismo,

Antes de nascer o sol.

Ontem habita nesta casa o Sol,

Hoje,

Habitam sombras, pedras e rosas envenenadas.

Esta casa, meu amor,

Mais parece um esqueleto sentado na penumbra…

Não abro as janelas.

Não.

Não quero ver a luz.

Sabes, meu amor,

Esta casa parece o inferno.

E eu que não sei o que é o inferno;

Se existe, não existe…

Ou é apenas um mito.

Esta casa perdeu a alegria.

Esta casa não é uma casa normal.

(também não sei o significado de casa normal)

Nesta casa deixe propositadamente morrer as plantas.

Estão de castigo.

Como os pássaros do meu jardim…

Nem esses me vêm visitar.

Voaram para outro jardim.

Assim,

Meu amor,

Esta casa parece um auspício em cima de uma montanha de lágrimas.

 

 

 

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

17/10/2019

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Transeunte faminto


O que faz a palavra na mão do transeunte faminto;

Comerá a palavra o transeunte faminto?

Comerá o faminto transeunte a palavra?

E se forem muitas palavras?

Muitos livros?

Como ficará o transeunte faminto!

 

Eu escrevo palavras.

Confesso que já tive fome.

Confesso que já me apeteceu comer as minhas palavras.

Mas fui infeliz ao cultivá-las!

 

Como quem cultiva o cereal e depois, da colheita,

Não tem coragem de comer o pão do cereal que cultivou.

 

Um livro come-se na madrugada.

Folheia-se no infinito deserto do pensamento.

Um livro não se como.

É indigesto durante a noite.

Um livro só é comestível quando se faz amor na madrugada.

Quando os pássaros poisam no peito da amada.

E o livro, ao poucos, em pedacinhos, como as migalhas da manhã…

Desparece no estômago do transeunte faminto.

 

Assim, para não me zangar com o vento,

Semeio palavras no meu jardim.

 

E sou tão feliz assim!

 

 

 

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

14/10/2019

domingo, 13 de outubro de 2019

A árvore da saudade


Diz-me tu!

Onde habitam as árvores dos teus sonhos.

Diz-me tu!

As palavras que me escreves quando a madrugada acorda,

E do amanhecer,

Uma flor poisa no teu sorriso.

Diz-me tu!

Onde crescem as acácias da minha infância,

E agora,

Não as consigo visibilizar como quando acordava o dia.

Diz-me tu!

O que faço com estes livros,

Diz-me tu!

O que faço com todas estas palavras que deambulam pela escuridão desta casa,

Fria,

Só,

Só.

Diz-me tu!

Que sombras são estas que brincam nestes compartimentos envenenados pela saudade…

Diz-me,

Tu,

Diz-me toda a verdade!

 

 

 

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

13/10/2019

sábado, 12 de outubro de 2019

Noites de geada


Sou o Sol que te aquece nas noites de geada.

Sou a parede do teu quarto que te acorda na madrugada.

Sou uma criança mimada.

Que brinca na sombra da alvorada.

Sou pedra perfumada.

Sou poema da palavra iluminada.

Sou o mar enfurecido numa Lisboa amada.

Sou livro, sou palavra assassinada.

Sou criança em risada.

Sou menino sem nada.

Sou espingarda.

Pistola abandonada.

Sou soldado do amor à procura de nada.

Sou eu que te escrevo na noite calada.

Sou calçada.

Sou o desejo no teu olhar, sou palavra riscada.

Sou o Sol, e mais nada.

Sou pedra cansada.

Sou socalco olhando o rio da saudade, sou a felicidade da hora amargurada.

Mas no final do dia, não sou nada!

Nada!

Apenas uma bandeira hasteada.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

12/10/2019

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

A pedra adormecida


Aqui estou eu;

Sentado sobre esta pedra adormecida pelo cacimbo.

Aqui estou eu pensando nas metástases nocturnas da infância,

Junto ao mar,

A revolução avança,

O soldado tomba na penumbra, morre.

Cada soldado tem um pai,

Cada soldado tem uma mãe,

Cada soldado tem mulher, filhos, irmãos…

E uma espingarda na mão,

Que dispara palavras.

Aqui estou eu;

Sentado no teu colo,

Afago-te o cabelo,

E mais logo,

Ao final da tarde,

Um pássaro de papel invade o teu olhar.

É isto o amor.

Amar,

Ser amado,

E escrever palavras no chão molhado.

Aqui estou eu;

Sentado numa pedra adormecida (pelo cacimbo).

Sei que respiro,

Sei que estou vivo,

Porque escrevo,

Beijo,

E não me sinto perdido.

 

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

11/10/2019