quinta-feira, 5 de março de 2015

Calçada da Ajuda


Está escuro
no exíguo espaço dos teus braços
mantenho-me aceso como uma fogueira invisível
no meio do campo
deserto
sem árvores
pássaros
ou... enforcados marinheiros
procuro a enxada do silêncio
e gemem as pedras xistosas dos lábios da alvorada
escuro
nada

como o transeunte sentado
na Calçada da Ajuda
procura
procura o carteiro
carta escrita
sem remetente
vem a morte
e leva-o para a biblioteca
abre um livro
folheia-o como se fosse o teu corpo adormecido sobre as lágrimas do veneno...
afugenta as palavras
e a tempestade alicerça-se-lhe no peito

começa a voar nos cortinados da noite
acende o seu último cigarro do dia...
e pergunta-se
quando?
quando terminará este dia...
a morte dos sonhos
envergonhados
lânguidos nas janelas sem vidros
o mar dança-lhe na algibeira da solidão
bebe um uísque...
e acredita que a poesia
habita no terceiro esquerdo dos teus seios...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 5 de Março de 2015

quarta-feira, 4 de março de 2015

Sentava-me no Tejo a contar cacilheiros, no final da tarde, depois de alguns cigarros, percebia que todos aqueles cacilheiros pertenciam ao exército dos apaixonados anónimos, tristes, convictos, passeavam-se como se fossem crianças num qualquer recreio de uma escola já extinta, encerrada,
Morta
Morreu, o Miguel trazia na algibeira meia dúzia de moedas encardidas pela sombra da noite, dormia debaixo de alguns cobertores de cartão, antes de adormecer desenhava no passeio pedestre algumas das imagens sem nome, de tantas outras... as fotografias de família
Morta?
Pais, avós... irmãos?
Sentava-me no Tejo, brincava com as gaivotas, saltávamos à corda, pegava num cinzeiro e esvaziava a algibeira quase...
Morta?
Irmão de papel, fumado, defumado, as palavras no quase... e ele... procurando irmãos invisíveis numa cidade invisível, não há miúdas nesta terra? Ainda é cedo, mais logo, talvez
Quase a desmaiar, sem sonhos, talvez imaginasse esta terra a terra prometida, mas não
Esqueceu-se do aparelho, Sr. António? E agora... como vai ouvir-me...! Sentava-me junto ao Tejo, mas não, fumava charros de areia enquanto a preia-mar se abraçava a mim, beijava-me, fodíamos como dois livros entrelaçados...
Ẽ?
Toca o telefone, morta...
Morta?
Quase...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 4 de Março de 2015

Olhares em beijos de luar...


Esboço os teus olhos na carlinga nocturna do prazer
finjo caminhar sobre as pedras íngremes do silêncio
em vulcão
as palavras desalmadas do caderno negro
as imagens da melancolia
no espelho secreto dos teus seios
fujo
e sem regresso...
imagino os rochedos da insónia
mergulhando na constelação do adeus
o plágio mágico de uma fotografia
e a simplicidade dos sentidos embainhados nas florestas em solidão
canso-me
e fujo
dos lábios em desejo
como as formigas procurando alimento
nas esplanadas da dor
esboço os teus olhos
o esquisso em desassossego dentro da caixa de madeira
janelas
portas
o segredo
quando os dardos envenenados atingem mortalmente o peito do artista
o circo ofegante
em murmúrios e pequenos gestos pincelados de sangue
os aplausos falsos
e os falsos sorrisos
na aldeia
entre ventos e tempestades de areia
sinto em mim o mar
e todas as marés do amor
o poeta adormece junto ao rio
escreve na espuma tingida de saudade
e canso-me
das palavras
e dos olhares em beijos de luar...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 4 de Março de 2015

terça-feira, 3 de março de 2015

(desenho de Francisco Luís Fontinha)


Mãe, como é o mar?
Lençóis de espuma, meu filho, silêncios de sombras poisadas numa tela virgem, aos poucos reaparecem as palavras e os riscos, a arte de amar e de navegar num beijo invisível, sem imagens, sem noite para chorar, as ruas completamente indiferentes às minhas tristezas, as cintilações dos versos descendo os socalcos imaginados pelas tuas brincadeira de menino,
Fui menino, mãe?
Cansei-me das palavras,
Escrita... nunca,
Mais
Amanhã restará uma única sílaba ao acordar, o espelho
Mais nada a acrescentar aos teus desejos, meu filho...
Cansei-me das palavras, mãe, das flores, dos sonhos e das cidade de vinil, cansei-me das mãos de porcelana da madrugada, sem janelas
O cubículo?
Morreu,
As janelas e o espelho completamente envergonhados pela partida do monstro das quatro cabeças, nada mais do que isso, literatura ao jantar, poesia ao pequeno-almoço, e
Morreu,
E alguns gladíolos apaixonados pelo jardim dos arciprestes, sabes? Falamos sobre isso, lembras-te?
Não, não...
Morreu.


(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 3 de Março de 2015


segunda-feira, 2 de março de 2015


(desenho de Francisco Luís Fontinha)

O fugitivo regressa, aparece disfarçado de pássaro, não voa, deixou de voar, sonhar, deixou de viver, e de construir castelos de areia junto ao mar, quando dizias que aos três anos de idade já voava...
Eles chegaram, o caixão ainda cheirava à tinta fresca da manhã, brincava um silêncio de olhos verdes no vão de escada,
Foder num vão escada, como fodem todas as palavras do poema...
Sabíamos que o corpo não pertencia às nossas vidas, e o fugitivo sem regressar aos nossos lençóis de sémen foragido, sem pátria, destino
A porta de entrada encerrada,
Janelas ainda não tinham acordado,
Destino, viver dentro de duas folhas brancas com olhos verdes, um círculo, o Sol, a Lua, o vazio do corpo na alvorada clandestina, fria, fria e amarga,
A porta
Deus, criador de tudo e de todos, a porta gaguejando, rangiam os biombos da literatura quando imaginava o mar na parede da biblioteca,
Apetecia-me
Queimar todos os livros, meus, desenhos, vozes, corpos de insectos e rosas embalsamadas, queimar as fotocópias e os fósforos da insónia, beijar-te, e olhar-te
A mim?
A porta entranhada entre dois segundos, as lâmpadas lá de casa todas fundidas, sós, escuras, como a humidade das palavras enquanto pessoas, nenhumas... monstras, vazio, a astronomia do ciume suspensa num cabo de aço, Rua da Nossa Senhora..., Não está, hoje,
O Doutor, a secretária do Doutor, e a porta, envergonhada como eu, porque hoje não houve madrugada, porque hoje morrem as palavras...


(cansei-me, vou deixar de escrever durante uns tempos e de frequentar as redes sociais, cansei-me e apetece-me ouvir Wordsong... embrulhar-me nos sons das palavras... e imaginar AL Berto voando junto ao Tejo. Vou ler muito mais e dedicar-me ao desenho)


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 2 de Março de 2015

Os silêncios da geometria

(desenho de Francisco Luís Fontinha)


Sentia-me opaco
indigente
afogado nos silêncios da geometria
sentia-me um texto
um... um transeunte
calcinado pelo desassossego da luz
e dos esqueletos vestidos de luz...
sempre que acordava
pensava que me tinha esquecido de acordar
as palavras
e o vento
levando os meus braços para o mar
Março
e cá estamos
desesperados
e velhos
no cansaço inventado pela Primavera
quase lá
as gaivotas em telepatia com os meus sonhos
os barcos ancorados no meu peito
e um debilitado relógio de pulso
em saltos
na calçada do “Adeus”
porque a morte é cega
porque o vício é o vício
dos livros
e dos desenhos
à mercê dos morcegos
e dos murganhos...
a eira em chamas
e os cigarros enlouquecidos nos lábios de uma aranha
acreditam?
em saltos
na calçada do “Adeus”
porque a morte é cega
e eu... e eu... sentia-me opaco.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 2 de Março de 2015


domingo, 1 de março de 2015


(desenho de Francisco Luís Fontinha)


Podíamos ancorar as estes versos, permanecermos impávidos das celestes lágrimas do Universo, Saudade? Caminhei, sentei-me sobre as quatro sombras da preguiça, sofri, sonhei, aprendi que o amor é um cubículo sem janelas,
Junto ao mar,
É tão lindo, o mar, mãe...
Os barcos e as jangadas de silêncio, os embriagados corpos dançando no texto, encerra-se o livro, e morre o escritor,
Um poema...
Palavras, sons, imagens, barcos, marés... sucata amaldiçoada pela fresta do luar, a astronomia e a matemática, dormem, saciam-se nas metáforas da insónia, corpos, nus, entre eles... o sexo desenhado em cada esquina, a porta do quarto rangia, gemia, e sabíamos que ninguém nos ouvia,
Orgia?
De palavras e de poesia,
Um poema?
Negro, opaco, sem corpo nem cabelo, morto, fictício... mas pouco, pouco, como os dias à tua espera...


(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó