foto: A&M ART and Photos
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Sou um corpo de tinta em movimento circular
uniformemente acelerado, voo como os pássaros e sonho como os
homens, sinto o prazer do vento no meu rosto como as mulheres, tenho
desejos, tenho palavras crispadas nas planícies do meu silêncio,
trago em mim o sorriso do mar que me abraçou quando eu criança, sem
saber que a distância se iria um dia entranhar no meu cansado peito
de rocha granítica, tinha nas mãos o invisível sossego das tarde
de Domingo, ouvíamos o relato de futebol, confesso que nunca fui fã,
mas entretinha-me a desenhar vestidos em papel vegetal, utilizava
lápis de cor, todos, menos o azul, na altura era proibido, depois
escolhia os tecidos, as linhas e as agulhas, e de dedal no dedo,
construía... destruía, cosia, descosia, e quando a noite se
preparava para nos invadir o quintal, eis que o vestido estava
prontíssimo a ser utilizado pelo meu amigo chapelhudo,
Um corpo submerso na tinta transparente do solstício
de verão, nuvens de algodão saboreavam a boca das crianças depois
do espectáculo de circo, sentávamos-nos no Baleizão, havia
frescura como se cada noite fosse diferente da interior, como se cada
noite fosse única, una, cancelas de palhaços voando entre as
cadeiras da esplanada, eu sonhava como uma gaivota à espera de
sossego para me erguer das ventosas linhas ínfimas dos paralelos da
calçada em direcção à cidade adormecida, todos dormiam, uns
snifavam coca, outros, fumavam heroína, outros... brincavam na areia
imaginária do largo dos aflitos corações de ardósia,
Coisas, ruins, coisas de homens e coisas de
mulheres, não coisas minhas, porque eu mergulhava em pedaços de
tinta, transformavam-me em tela, e um gajo sobejava-me traços a
carvão, ao poucos crescia em mim uma cidade de Inverno, frio, o
corpo transpirava, havia vómitos como havia flores nos jardins por
onde passava, olhava, e vinham-me as saudades dos livros de poemas
que deixei sobre a casa de penhores, uma máquina de calcular, uma
máquina fotográfica, tudo, pouco
Quanto me dá por tudo?
Nada, três contos de reis, ninharia, dois pacotes
por três, promoção, comprem meninas, meia, calcinhas, vestidos
decotados, tecido estampado, última moda em Paris, nada, três
contos, e um texto em ficção, dois poemas por três frases sonhadas
e pensadas na casa de banho do café, dançavam estradas de alumínio
entre mãos, estradas sem portagens, livres, gotas em bolhas,
castanhas, os olhos vidrados, e começava a cair sobre nós uma
penumbra chuva miudinha de sono,
Quanto? Só?
Dormíamos sobre os joelhos, e quando acordávamos...
uma flor sorria-me, e em lábios carnudos, dizia-me simplesmente
Bom dia, meu amor,
Dizia-me simplesmente... porquê, Francisco...
Porquê.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha