Mostrar mensagens com a etiqueta paquete. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta paquete. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O tambor do desassossego


Quando o tambor do desassossego entoa no coração da sanzala,
há uma palavra reescrita na pele húmida do amanhecer...
leio... leio SAUDADE...

Sento-me junto ao pequeno charco acabado de nascer,
puxo de um cigarro,
e finjo ver o mar a regressar da sombra das mangueiras,
as pequeníssimas películas de cacimbo alicerçam-se aos meus dedos,
ao longe, mulheres... e fogueiras,
e missangas de medos,
saltitando nos braços cansados de um esqueleto de papel,
oiço o bater fulgurante do zinco conta a solidão de um menino chorando,

Um dia a guerra o levará,
sua mãe morta rezará no altar da areia branca do faroleiro de pedra,
os meus dedos minguam quando um cadáver de insónia poisa no meu cigarro...
e espero... e não regressa o mar,
desce um corpo de prata dos coqueiros envelhecidos,
há uma palavra reescrita na pele húmida do amanhecer...
leio... leio SAUDADE...
e adormeço sem me apetecer,

Em criança brincava com silêncios e um velho triciclo em madeira,
acreditava nas flores,
acreditava que um dia..., que um dia voava como os pássaros,
envelheci, e o meu cigarro terminou quando um paquete de rebuçados atracou em mim,
transeuntes com pesadíssimos caixotes em madeira,
choravam...
e círculos de espuma saltavam à corda no cais dos caixotes em madeira...
perdi-me, e hoje... e hoje sento-me junto ao pequeno charco acabado de nascer,

O mar não regressará nunca,

E,

Quando o tambor do desassossego entoa no coração da sanzala,
há uma palavra reescrita na pele húmida do amanhecer...
leio... leio SAUDADE...

E leio sofrer!


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 25 de Julho de 2014

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Transeunte paquete de imagens

foto: A&M ART and Photos

Transeunte paquete de imagens escuridão
semi-nuas entre palheiros com gaivotas em transe
e lâmpadas de incenso na janela da seara adormecida
sinto-me quando me sento nos confins desenhos dos muros em betão
correndo mar adentro
como âncoras de chocolate escorrendo pelos corpos despidos cansados...

O teu e o meu suspensos das nuvens agrestes que as sílabas constroem
sinto-me e sento-me perdidamente embriagado nas ondas oceânicas madrugadas
comia manhãs saboreando as páginas perdidas de uma sebenta ensonada
transeunte paquete de ti em minha mão ensanguentada
desces do pôr-do-sol e entranhas-te em mim
como se fosses uma livraria apaixonada.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Claro que podia ser pior

Talvez, um dia, quem sabe, junto ao cais da rocha conde de Óbidos, zarpe, visto-me de marinheiro, pego num pequeno barco, de preferência, em madeira prensada, por causa do peso, e zarpo, sem rumo, destino, endereço físico ou electrónico, deixo ficar tudo
Não acredito que o faças, e enquanto a oiço penso nas ruas onde brinquei, me sentei, caí e chorei, penso, recordo, e enquanto a oiço vejo-me sentado em cima de uma grade de madeira onde alguém tinha trazido maçãs, ou pêssegos, talvez laranjas, foi há tempo suficiente para não me recordar, e sei que junto ao portão eu o esperava, abraçava-o e ele dava-me um beijo, pegava na minha mão trémula, e desaparecíamos entre as sombras das mangueiras,
Deixo ficar tudo, e mergulho no vácuo
Sem rumo eu, hoje, dele, quando o mar, talvez laranjas, o mar pegava nele e levava-o a passear pelas ruas invisíveis da cidade iluminada por candeeiros a petróleo e flores com olhos verdes, dele, o mar vestia-o de marinheiro, e zarpava, corria e descia a calçada, sempre apressadamente abraçado à loucura, esquecia-se sobre a mesa da cozinha do fuso horário, parava sobre o equador, toda a noite, o baile de gala, dançavam, dele, nunca lhe ouvi uma palavra de amor, nunca, nunca lhe ouvi um sorriso nos lábios, nunca, sem rumo, eu, hoje, quando o mar, oiço-lhe os lamentos solitários das noites mórbidas que um desenhador constrói com um esquadro e uma régua, os lamentos
Que puta de vida a minha,
Claro que podia ser pior, dizia-lhe eu, e um dia deixo ficar tudo, e mergulho no vácuo, e um dia deixo ficar tudo e mergulho no plasma das tuas veias e vou em direcção ao arco da lua, cerras os olhos, cerras os olhos e oiço-te
Que puta de vida a minha,
E digo-te, e digo-o e escrevo-o para que nunca o esqueças
Que podia ser pior?
E escrevo-o, e digo-o para que um dia nunca o esqueças, nunca, nunca acreditei que o fizesses, e enquanto te ouvia pensava nas ruas onde brincávamos, nos sentávamos, caíamos e chorávamos, pensava, recordo, e enquanto te ouvia via-me sentado em cima de uma grade de madeira onde alguém tinha trazido maçãs, ou pêssegos, talvez laranjas, foi há tempo suficiente para não me recordar, e sei que junto ao portão ele me esperava, abraçava-me e dava-me um beijo, pegava na minha mão trémula, e desaparecíamos entre as sombras das mangueiras, hoje não
E digo-te, e digo-o e escrevo-o para que nunca o esqueças
Que podia ser pior?
Muito pior.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó