quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Claro que podia ser pior

Talvez, um dia, quem sabe, junto ao cais da rocha conde de Óbidos, zarpe, visto-me de marinheiro, pego num pequeno barco, de preferência, em madeira prensada, por causa do peso, e zarpo, sem rumo, destino, endereço físico ou electrónico, deixo ficar tudo
Não acredito que o faças, e enquanto a oiço penso nas ruas onde brinquei, me sentei, caí e chorei, penso, recordo, e enquanto a oiço vejo-me sentado em cima de uma grade de madeira onde alguém tinha trazido maçãs, ou pêssegos, talvez laranjas, foi há tempo suficiente para não me recordar, e sei que junto ao portão eu o esperava, abraçava-o e ele dava-me um beijo, pegava na minha mão trémula, e desaparecíamos entre as sombras das mangueiras,
Deixo ficar tudo, e mergulho no vácuo
Sem rumo eu, hoje, dele, quando o mar, talvez laranjas, o mar pegava nele e levava-o a passear pelas ruas invisíveis da cidade iluminada por candeeiros a petróleo e flores com olhos verdes, dele, o mar vestia-o de marinheiro, e zarpava, corria e descia a calçada, sempre apressadamente abraçado à loucura, esquecia-se sobre a mesa da cozinha do fuso horário, parava sobre o equador, toda a noite, o baile de gala, dançavam, dele, nunca lhe ouvi uma palavra de amor, nunca, nunca lhe ouvi um sorriso nos lábios, nunca, sem rumo, eu, hoje, quando o mar, oiço-lhe os lamentos solitários das noites mórbidas que um desenhador constrói com um esquadro e uma régua, os lamentos
Que puta de vida a minha,
Claro que podia ser pior, dizia-lhe eu, e um dia deixo ficar tudo, e mergulho no vácuo, e um dia deixo ficar tudo e mergulho no plasma das tuas veias e vou em direcção ao arco da lua, cerras os olhos, cerras os olhos e oiço-te
Que puta de vida a minha,
E digo-te, e digo-o e escrevo-o para que nunca o esqueças
Que podia ser pior?
E escrevo-o, e digo-o para que um dia nunca o esqueças, nunca, nunca acreditei que o fizesses, e enquanto te ouvia pensava nas ruas onde brincávamos, nos sentávamos, caíamos e chorávamos, pensava, recordo, e enquanto te ouvia via-me sentado em cima de uma grade de madeira onde alguém tinha trazido maçãs, ou pêssegos, talvez laranjas, foi há tempo suficiente para não me recordar, e sei que junto ao portão ele me esperava, abraçava-me e dava-me um beijo, pegava na minha mão trémula, e desaparecíamos entre as sombras das mangueiras, hoje não
E digo-te, e digo-o e escrevo-o para que nunca o esqueças
Que podia ser pior?
Muito pior.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

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