Talvez, um dia, quem sabe, junto ao cais da rocha
conde de Óbidos, zarpe, visto-me de marinheiro, pego num pequeno
barco, de preferência, em madeira prensada, por causa do peso, e
zarpo, sem rumo, destino, endereço físico ou electrónico, deixo
ficar tudo
Não acredito que o faças, e enquanto a oiço penso
nas ruas onde brinquei, me sentei, caí e chorei, penso, recordo, e
enquanto a oiço vejo-me sentado em cima de uma grade de madeira onde
alguém tinha trazido maçãs, ou pêssegos, talvez laranjas, foi há
tempo suficiente para não me recordar, e sei que junto ao portão eu
o esperava, abraçava-o e ele dava-me um beijo, pegava na minha mão
trémula, e desaparecíamos entre as sombras das mangueiras,
Deixo ficar tudo, e mergulho no vácuo
Sem rumo eu, hoje, dele, quando o mar, talvez
laranjas, o mar pegava nele e levava-o a passear pelas ruas
invisíveis da cidade iluminada por candeeiros a petróleo e flores
com olhos verdes, dele, o mar vestia-o de marinheiro, e zarpava,
corria e descia a calçada, sempre apressadamente abraçado à
loucura, esquecia-se sobre a mesa da cozinha do fuso horário, parava
sobre o equador, toda a noite, o baile de gala, dançavam, dele,
nunca lhe ouvi uma palavra de amor, nunca, nunca lhe ouvi um sorriso
nos lábios, nunca, sem rumo, eu, hoje, quando o mar, oiço-lhe os
lamentos solitários das noites mórbidas que um desenhador constrói
com um esquadro e uma régua, os lamentos
Que puta de vida a minha,
Claro que podia ser pior, dizia-lhe eu, e um dia
deixo ficar tudo, e mergulho no vácuo, e um dia deixo ficar tudo e
mergulho no plasma das tuas veias e vou em direcção ao arco da lua,
cerras os olhos, cerras os olhos e oiço-te
Que puta de vida a minha,
E digo-te, e digo-o e escrevo-o para que nunca o
esqueças
Que podia ser pior?
E escrevo-o, e digo-o para que um dia nunca o
esqueças, nunca, nunca acreditei que o fizesses, e enquanto te ouvia
pensava nas ruas onde brincávamos, nos sentávamos, caíamos e
chorávamos, pensava, recordo, e enquanto te ouvia via-me sentado em
cima de uma grade de madeira onde alguém tinha trazido maçãs, ou
pêssegos, talvez laranjas, foi há tempo suficiente para não me
recordar, e sei que junto ao portão ele me esperava, abraçava-me e
dava-me um beijo, pegava na minha mão trémula, e desaparecíamos
entre as sombras das mangueiras, hoje não
E digo-te, e digo-o e escrevo-o para que nunca o
esqueças
Que podia ser pior?
Muito pior.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó