quarta-feira, 18 de março de 2015

A serpente de vidro


O fantasma orgulho do corpo
que navega nos sorrisos imperfeitos
fingimento
quando a noite cai
não vive
e quer
ser
não sendo
o que é...
uma lâmpada de lágrimas
alicerça-se ao ombro ferido da serpente
tem na roupa a etiqueta

mas...
mas existem pedras de giz
na ardósia tarde que observa o rio
não vive
e quer
ser
não sendo
o que parece
às vezes é uma estrela
às vezes... não passa de uma sombra
velha por dentro
infeliz

coitada
e quer
a serpente sobre a secretária
difícil de perceber
o amor
as palavras
os livros
e todas as lâminas que o sono constrói no sonho
a casa desabitada
infestada de personagens
cansadas
como o silêncio luar...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 18 de Março de 2015

terça-feira, 17 de março de 2015

A poesia habitava num edifício caquéctico, quinto andar esquerdo, António folheava as fotografias de Margarida,
O tempo entranhou-se nas nossas estórias,
Ouvia-a enquanto ela se despia,
Sentia-me uma letra esquecida nas pálpebras do anoitecer, lá fora brincavam crianças, fingiam que eram sombras húmidas abraçadas ao mar, o eterno
Se despia, dançava para mim, enquanto eu, eu nem a olhava, lia um poema de um autor desconhecido, embrulhava-me no poema... e
Se despia, o eterno momento do desejo, dois corpos de luz sós no vazio, nada, ninguém em redor, apenas percebia que o espelho do sexo baloiçava nas mãos de uma andorinha,
Miguel,
A guerra, “a merda da guerra”, a morte anunciada antes de partir
Vais morrer,
Antes de partir, nas mãos de uma andorinha, ele,
Fotografias...
Ele imaginava o pai um herói, e afinal... um covarde, o perfeito covarde das algas em flor...
Migue?
Sim, pai,
Ontem chegaste tarde a casa...!
Eu, pai?
António
Que não,
António defendia o irmão,
Tarde?
Cheguei depois dele...
Que não, que as guerras não deviam existir
Angola,
Amor de “mãe”,
Foi-se,
Morreu, em combate...


(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 17 de Março de 2015

Sítios comuns


Os sítios comuns
sempre a mesma rua
o mesmo cigarro
o senhor da esquina
jornais
sapatos
trapos
livros
velhos
o mesmo fumo
todos os dias
o horário nocturno,

as filas invisíveis para ancorar o sono
a cama
o sofá
velhos
iguais
feios
imundos como os meus poemas
os sítios comuns
em círculos de espuma
uma janela doente
o reumático
nunca se abre,

os ossos em papel
ardem
desassossegadas palavras
na algibeira do senhor da esquina
o corpo que se vende
e as estátuas que se compram
ninharias
coisas pequenas
pedras
barcos
cidades a apodrecer
sexos complexos nas montras do abismo,

acreditar
e desacreditar
nos livros
dos livros
e das jangadas de silêncio...
a mão poisa no ombro da manhã
afaga-lhe a cabeça
desenha-lhe no olhar a solidão dos panfletos adormecidos
publicidade
vende-se apartamento junto ao mar...
e sempre a mesma rua
sempre o mesmo cigarro.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 17 de Março de 2015

segunda-feira, 16 de março de 2015

Apaixonado, os búfalos alicerçados ao poema, o eterno perdido, navegando pelas linhas transversais da paixão, a guerra
Nunca conheci o meu pai,
Fotografias, uma velha espingarda... e
A guerra dentro do meu sangue, o meu irmão clandestinamente afogado no medo de não acordar, e todos os dias
Pai?
Em combate, os dias espelhados numa pequena folha em papel, ouviam-me os espirros das espingardas, ao longe, distante, o capim dormindo, cigarros incendiando os sonhos da adolescência, os textos confusos, as ditas fotocópias das fotografias... assassinadas,
Por um louco,
Miguel?
Margarida acredita no amor depois da morte,
Ele
“Foda-se”,
Ele sentado numa cadeira de praia, lia o jornal, olhava-me
Um dia
Regressarmos?
Nunca, pensava eu, ele sabia que um dia
Morto em combate,
“Filho da puta”...
Amor de mãe.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 16 de Março de 2015

Esteios


A melodia nocturna da aventura
os esteios do silêncio abraçados ao cansaço
desespero
e espero
que acorde o dia
sem amargura
sem... sem cortinados de penumbra
baloiçando no pescoço da saudade
os cigarros entre as estrelas
os dedos mergulhados nos teus seios
acesos
em espuma
palavras
números
portas
e ruas
despidas
nuas
e sinto do outro lado do rio
os guindastes da solidão
voando como gaivotas
livres
como os barcos
sem marinheiros
sem...
acesos
os ossos em papel
das migalhas invisíveis do voo
o infinito
destino
das mãos
quando alguém desiste do luar
e sem... acesos
os ossos
o infinito destino
das mãos no leito do sono...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 16 de Março de 2015