foto: A&M ART and Photos
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Atravessava as portas pintadas nas paredes verdes
como se tivesse a formula mágica de enrolara-me num pequeno ponto de
luz, mergulhar na profunda escuridão da tarde meia adormecida, meia
cambaleante devido aos soluços pulmonares que os pedaços de
alcatrão encontraram ao adormecerem dentro da caverna esponjosa e a
esposa, a minha, apressadamente a derramar pingos de xarope numa
colher para me aliviar os brônquios, ouvia-o a ele
tens os brônquios entupidos, queres que te faça o
quê? E claro, senhor Doutor, claro, e repetidamente – Se ao menos
deixasses de fumar? - pois, senhor doutor, pois...
Eloquente, audaz, simplicíssima como rosas brancas
acabadas de colher, era eu disfarçado de deusa do Sol, depois de
ponto de luz, agora, neste momento, uma bomba louca de hidrogénio,
fervilha, fervilho até enlouquecer os sons poéticos das minhas
palavras deixadas adormecidas nos teus lábios, quando, assim... me
despeço, caminho, percorro palavras distanciando-me da madrugada, e
pois,
o maldito xarope, a maldita respiração, parecendo
uma velha habitação de montanha com a canalização entupida,
imunda, extremamente frágil como as borboletas em redor dos
orifícios profundos dos meus espelhos ornamentais que herdei de um
tio que por razões desconhecidas, dizem as crónicas, perdeu-se
algures numa cidade no Brasil, quando regressava à aldeia fazia-se
acompanhar de um palhinhas, um terno devidamente confeccionado, e na
lapela usava uma rosa de papel, encarnada
Eloquente,
linda, como as portas envidraçadas que serviam de
acesso ao escritório, lindas, as portas envidraçadas quando te
escondia nas traseiras, nua, não nua, ou apenas afumar o teu último
cigarro, e da tua mão, vinha-me o cheiro do teu último uísque,
não, amor, não me apetece, hoje,
E ouvíamos os rosnar do motor do velho Kadett, e
líamos o último poema da noite, simples, uma quadra, duas quadras,
tu, sempre tu a escolheres o doce AL Alberto, porque eu, há muito
deixei de acreditar nas palavras, porque eu há muito deixei de
acreditar nos silêncios, porque o silêncio não existe, existe,
sim, e sempre, um pequeno som, uma pequena sombra de lítio, ou um
sonífero de iodo, como quando experimentávamos as lâmpadas
florescentes como roulotes de farturas e churros, bifanas e cerveja
com tremoços, e tu dizias-me
cansada, meu doce príncipe das noites mal dormidas,
E eu dizia-te que um dia, quando pudesse, compraria
uma cabana no cimo da montanha azul, e lá construíamos os alicerces
dos chás de camomila e pericão, e de lá, sentados sobre uma pedra
de incenso, ouviríamos uma música dos Fingertips, apenas porque
apreciamos a melodia, e recordamos as terras sibilantes de S. Pedro
do Sul, descíamos até às termas, visitávamos a campa dos avós, e
novamente regressávamos à nossa enorme pedra de granito, a rocha
desejada e que nos tempos mortos do dia, servia-nos para brincarmos
às escondidas,
sempre a brincar, meu maroto
Não, amor, não me apetece, hoje,
boa noite palavras de ninguém, hoje somos muitos,
amanhã, ou depois de amanhã, poucos ou nenhuns, porque o vento
leva-nos os amigos, o amor, e a saudade, e deixa como moeda de troca,
o desejo, a solidão de dois corpos, frios, húmidos, dois corpos que
outrora foram os audazes cinzentos edifícios da grande cidade, toca
o telemóvel, nada de especial sinal de chegada de correio
electrónico, publicidade, malabaristas a oferecerem-me emprego
sabendo que estou desempregado, envio o meu currículo, e depois,
depois fico com o meu endereço de correio numa base de dados que
serve exclusivamente para vender coisas, que
“linda, como as portas envidraçadas que serviam
de acesso ao escritório, lindas, as portas envidraçadas quando te
escondia nas traseiras, nua, não nua, ou apenas afumar o teu último
cigarro, e da tua mão, vinha-me o cheiro do teu último uísque”
acaba de ganhar uma viagem para duas pessoas, e como
eu apenas sou um, desisto, apago, finjo que não recebi, em seguida
que têm trabalho para mim, mas, e claro, há sempre um mas... tenho
de ter Internet, telefone fixo e disponibilidade, e o mais importante
Sigilo, o máximo de sigilo,
tem telefone fixo, senhora Maria? Maria? Não sou
Maria, sou Teresa... oh... parvoíce a minha, Maria é a senhora do
portão encarnado, mas... tem telefone fixo senhora Teresa? Eu? Não
senhor... menino,
Ofereço-lhe um, chamadas ilimitadas para todas as
redes, e tudo por apenas quinze euros mensais, que acha? Acho bem,
sim senhor...
e o universo gira entre vidros em portas de
escritório, o último uísque, o último poema, depois de várias
carícias, o ultimo orgasmo e o penúltimo poema, e o tão
esperado... último cigarro, atravessava as portas pintadas nas
paredes verdes como se tivesse a formula mágica de enrolara-me num
pequeno ponto de luz, mergulhar na profunda escuridão da tarde meia
adormecida, meia cambaleante devido aos soluços pulmonares, e da
sala ouvimos a campainha do telefone que o gajo nos impingiu e que
não nos serve de nada...
Vidros, portas, paredes verdes e corpos encapuçados
como cobertores de insónia.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha