foto de: A&M ART and Photos
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Tinhas-me inventado debaixo da sonolência que a
transpiração das árvores deixava impregnada entre roupas e
pequenos papeis, havia entre nós uma caneta de tinta permanente,
negra, havia nas nossas algibeiras alguns pedaços de granito, olhos,
lábios, pintados, nuvens, algumas em pano simples algodão com
tranças castanhas, na cabeça, um laço de porcelana, e tínhamos, e
víamos, e sentíamos, os doces milhafres da saudade,
vivi como um sonâmbulo canino dentro de um canil de
verniz, percebia pela claridade que pertencia aos desperdícios de um
candeeiro, algures, perto de mim, algures, feito de ferro
enferrujado, um paquete mergulhado nos teus seios, homens, mulheres e
crianças, todos à espera da ancoragem, devagar, tão lentamente...
que percebia-se-lhe, das pequenas sombras, os distanciamentos
milimétricos até atingir o cais, longínquo, atulhado de caixotes,
carros desgovernados acabados de sair do porão, metros debaixo de
água, de cima, tão pequeninos... as formigas e as abelhas suspensas
nas madrugadas de nós, enquanto a janela aberta nos silenciava os
corpos húmidos pelo suor da noite em cacimbo que os pequenos cubos
de vidro absorvem,
Da saudade, porquê se todas as noites cerram-se as
persianas do amor, como lajes de granito sobre a terra árida do
monte em pequenos delírios, como árvores em busca da sombra, como
sexos à procura da insónia no divã expressamente deitado sobre o
soalho do quarto vazio, sombrio, porque da janela, nada, nem a
abertura, nem a luz, nada, sobejou entre nós, naquela noite, em
escuridão, quando deixamos-nos adormecer e os nossos corpos passaram
a zumbis envenenados pela saliva da tua boca com sabor a mar...
havia algas, havia pequenos grãos de areia,
havia...
Imagens, sorrisos travestidos de dor, mãos
cinzentas na penumbra como se o laço de porcelana que trazias na
cabeça, hoje eternamente doentio, sobrevivesse ao cataclismo dos
morcegos que alimentam a noite com pequenas migalhas de sangue,
alguns répteis e outras tantas telas prontíssimas como o destino da
fogueira, flores, lápis de cor, pastel misturado com suor, o teu
corpo permanece dilacerante como a dança dos arbustos na despedida
com a ajuda dos sorrisos construídos nas horas de vazio, o contador
mergulha no horário e pára quando entras em casa, e percebo que o
teu olhar fulmina qualquer ser vivo,
também eu, sinto-me vivo, ou não? Também eu adoro
sorrisos e beijos de amêndoa recheadas com chocolate, também sonho
com noites, inventadas por ti, e acariciadas por mim, também eu
Vivo, preciso de viver, como os peixes do teu
aquário, “se tens aquário”, se não tiveres um aquário, peço
desculpa pela ofensa, e onde se lê “como os peixes do teu aquário”
deve ler-se “como os peixes do teu silêncio ventre”, e amanhã
regressará o candeeiro do amor, entre cartas e flores em desenhos,
pequenos guardanapos com parvas palavras, mas é isto o amor?
claro que eu percebia pela tua silhueta que um dia
deixarias de aparecer junto à lua, percebia-se que um dia deixarias
de sorrir, talvez só o tenhas deixado para mim, mas eu percebia tudo
isso, excepto...
Porque morrem as fotografias com imagens a
preto-e-branco?
Excepto que há sorrisos infinitos, como duas rectas
paralelas se encontram no infinito, tudo isso eu percebo, nada de
corações entendo, apenas que uns são de xisto, outros de açúcar...
e ainda há aqueles invisíveis, frios, húmidos como as margens de
uma ribeira que desce a montanha, e não esquecendo os pedaços de
granito, olhos, lábios, pintados, nuvens, algumas em pano simples
algodão com tranças castanhas, na cabeça, um laço de porcelana, e
tínhamos, e víamos, e sentíamos, os doces milhafres da saudade, e
das ruas vinham até nós os morcegos das noites sem numeração,
confundiam-se nos números de polícia, e quando queriam entrar no
número vinte e três da rua do Deserto, não, nem tão pouco,
próximos, se encontravam da rua do Deserto, quanto mais do número
vinte e três, e assim, e assim
porque morrem as fotografias com imagens a
preto-e-branco?
Consegui afugentar os morcegos das tuas mãos de
linho, consegui que os mesmos morcegos, quando esfomeados, nunca
tenham encontrado a tua boca em desespero pelos meus lábios, e hoje,
espero, acredito,
o que é acreditar, pai?
Acreditar... não sei filho, há muito o deixei de
fazer.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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