foto: A&M ART and Photos
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Perdia constantemente, as coisas boas da vida,
perdia relógios, perdia calendários, perdido eu, perdia-te sempre
como perco as gaivotas de Maio, um barco indefinido, sombrio, no
domingo, não estou, fui, como ela, fui e não regressei e não vou
regressar
porquê
Perdia-te, e perco, nasci perdido, nasci dentro de
um mês explícito, também ele, perdido, perdido, era verão,
em Janeiro, verão
Precisamente, em Janeiro, verão, perdia-te, comei a
perder-te já dentro da maternidade, depois, depois no baptismo, e
parece que caíram todos os santos quando me viram, e a Igreja da
Nossa Senhora da Conceição, toda ela, por mim, em lágrimas,
e por vinte escudos,
Nada,
ninguém?
A terra, o pavimento térreo, pequenas janelas,
pedacinhos de luz, entre o branco e o negro, circunferências de
corpos, incluindo, o teu, o dela, o dele, de lábios em triângulos,
de bocas em cubos, ou... ai as saudades dos hipercubos, das lareiras
em flor, da Ajuda subindo a Calçada, descendo cordas de sombra,
comendo sandes rápidas depois de voar a tarde sobre a ponte com
acesso ao teu púbis de mel, a outra cidade em ti, e de ti, as ruas
resumidas a pequenos grupos de palavras, simples palavras, pequenas
canções, melodias que eu ouvia quando te sentavas sobre o meu
ventre descarnado, sem folhas, suspenso num paralelo de vidro
ninguém e nada, entre nós como Dezembro depois da
madrugada,
Escrevia Janeiro e debaixo do Sol tórrido
entranhavam-se-me os finos arames que seguravam o tecto das estrelas
onde dormia uma tenda, um enorme oleado, por baixo, uma longa
estrutura metálica
era o circo
Homens e mulheres e crianças, e palhaços, e cães
amestrados, e trapezistas, malabaristas e eu como ninguém, sentado
num banco, em madeira apodrecida, contava eu, cada buraco preenchido
pelo bicho da madeira, quadrados, círculos de corpos, o teu, o meu,
o dela e o dele, os nossos transformavam-se em madeixas coloridas, em
pequenas sandálias de couro, entre calções e saias de chita,
crianças que inventavam espectáculos, o público emergia, crescia,
e depois
fugiam de nós,
Como hoje, ontem, e depois havia a cama de pregos
onde o conceituado artista plástico, escritor e poeta, e zé
ninguém, eu, ou outro igual, se deitava, adormecia, enquanto
gosto dela, assim, semi-deitada, com as pernas
poisadas sobre a terra doirada, gosto dela assim, encurvada, quase
nua, quase silenciosa, quase emagrecida nos poucos grãos de areia
que o mar deixa nos circunflexos corpos com asas, com barbatanas,
como tu, como nós,
E
(era o circo, e perdia constantemente, as coisas
boas da vida, perdia relógios, perdia calendários, perdido eu,
perdia-te sempre como perco as gaivotas de Maio, um barco indefinido,
sombrio, no domingo, não estou, fui, como ela, fui e não regressei
e não vou regressar...)
enquanto tu semi-nua, dizias-me com pequenos traços
no chão agreste da terra adormecida que os meus olhos mudavam de
cor, conforme os dias, as horas, as semanas, em Janeiro, em pelo
verão
Verdes,
em Agosto, quando mergulhávamos no cacimbo,
pareciam âncoras de cacilheiros esquecidos no Tejo, e no entanto, no
meu cadastro
(Cento e setenta e cinco centímetros, branco ou
caucasiano, olhos verdes – Verdes? - e foi visto pela última vez
na zona do Roque Santeiro, vestia calças de ganga e t-shirt branca
com pequenas formas geométricas estampadas no rosto)
verdes, verdes, verdes... como as ervas,
E ele não regressou dos olivais de Outubro, à
volta de mim, pedaços de luz em decomposição, e esperava pelo
comboio das dezanove horas, abria a porta, espreitava
às voltas, em círculos, como serpentes enfeitadas
com veneno imaginário, como tu, imaginavas-me na aula de geometria
descritiva, ou em termodinâmica... ou em mecânica dos materiais, e
pelos vistos, eu, sem tu o saberes, há muito tinha desaparecido...
O comboio partia, e ninguém tinha poisado o pé
sobre a plataforma em cimento sonífero como as plantas do teu
Outono, ao contrário do meu, e ninguém a poisar um saco, uma
simples mala, nada, e depois de três apitos fortíssimos, ela lá
ia, lá ia até encontrar um poiso com olhos verdes, como os teus,
como os teus, esses braços... que nunca abracei.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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