Chega, como todas elas disfarçadas de leão, ou
andorinha, ou gaivota, conversávamos debaixo das cerejeiras
mergulhadas nos olhos tristes, negros, que às vezes também sofrem,
dormem, voam sobre o xisto em lençóis de vento, fatias de
madrugada, migalhas concentradas na água mineral da pobreza,
sabia-o, quando aparecias dentro da minha mão, saborosa, a sua boca
convexa, cinzenta, com mordeduras de marfim nos finais de tarde junto
ao Tejo, conversávamos
Sabias que hoje o Gonçalves se vai casar?
Não, não sabia, e tenho a certeza que é a
primeira vez que oiço tal coisa, casar o Gonçalves? Hum... só
vendo com estes dois olhinhos de cereja com chocolate, ora essa... o
Gonçalves,
Ora essa, chega, como todas elas disfarçadas de
leão, cobras e lagartos, em cima da mesa velha em madeira recheada
com o bicho e a teia de aranha da vizinha Manuel, e tal coisa,
diga-se, juro que não vi nada, juro que nunca me deitei na cama
dele, nem em sonhos
Nem em sonhos, suas desgraçada?
Juro, juro madrinha, juro
Apaixonei-me por bailarinos e bailarinas, em miúdo,
o meu ídolo chama-se, e vá lá saber-se porquê, chama-se
Rudolf Nureyev,
E o silêncio entranhava-se-me como as primeiras
palavras que ouvi, e o mar batia-nos à porta, abríamos-a, e ele
entrava, o corpo dele parecia construído em fibra de carbono
aerodinâmicamente adormecida nas clausuras dos grandes desenhos que
ficaram expostos no barco em esferovite com um motor de um carro a
pilhas, uma hélice de sílabas saboreava o estômago feliz do tanque
onde as meninas iam lavar a roupa, e nós, rapazolas traquinas,
sujávamos a roupa a corar silenciosamente poisada sobre as ervas
filhas de Deus, e nós
Rudolf Nureyev, fascinava-me...
E nós
(juro, juro madrinha, nunca fui com ele para a
cama), e nós deitávamos a cabeça no sono do vento, abraçávamos-nos
como se abraçavam as plantas do jardim da tia Clementina, que Deus a
tenha em bom descanso, e eu, armado em camelo, acreditei
Que hoje casava o Gonçalves, e afinal, não casou,
e afinal, tudo um conto transformado em pesadelo, a noite desceu e
levou-o até ao Terminal de Cruzeiros da Rocha Conde de Óbidos, e o
meu rosto mais parecia um óbito do que uma criança acabada de
regressar do infinito, com uma pesadíssima mala indesejada, feia,
mórbida, torrencialmente vestida de prateado, e lá dentro
Coisas, coisas de uma criança,
E lá dentro,
Nem em sonhos, suas desgraçada?
Juro, juro madrinha, juro
Apaixonei-me por bailarinos e bailarinas, em miúdo,
o meu ídolo chama-se, e vá lá saber-se porquê, chama-se
Rudolf Nureyev,
E lá dentro, alguma camisetas, calções, um par de
sapatos, um par de sandálias, três ou quatro bonecos, um avião e
um barco, e lá dentro, coisas, muitas, poucas, desgraçada
Juro,
E apenas encostei a minha cabeça no seu ombro,
madrinha, só isso, e nada mais,
E achas pouco?
Havia mandíbulas de areia com espinafres, sobre o
soalho de pano brincava um longo triângulo com três olhos de cereja
com chocolate, estão a ver?
Aqueles olhinhos como os da Alice, sim, a Alice
Silvestre, ora não sabem quem é..., a Alice, porra, a que vive no
final da rua junto ao fontanário, quem desce do lado esquerdo as
escadas para o talude dos orgasmos, uma flor de terra salgada emerge
do longínquo cilindro de granito, estão a ver?
A que tem três galinhas e um galo? Sim, essa, essa
mesmo, nem mais, que coisa, para perceberem uma simples asa de
borboleta fazem cá um espectáculo que até parecem o
Rudolf Nureyev,
Entre sonhos e birras de infância,
E eu ouvia-os
Francisco come a sopa,
E ele
Ouvia-os como ouvem os mercadores que se passeiam
pelas avenidas desesperadas da cidade com cadeados de seda e sombras
de linho, e ela, a querida Alice, não chorava, e a outra, a
afilhada, chorava desejando que desejava
Repetir,
Apenas,
Deitar a cabecinha no ombro dele...
Sem que a dita madrinha soubesse, como nunca o
sabem, as pessoas que trabalham como espantalhos nos campos de milho
de Carvalhais, e era eu, eu que desenhava círculos no rabo de uma
agulha e depois
chorava,
E queria ser como o
E depois,
Como o chorava dos vidros e dos pregos de aço,
quando derretiam os cubos de manteiga pasteurizada que a avó Silvina
trazia da loja, uma tasca que de vinho, também vendia, pão,
manteiga, arroz e feijão...
E saudades de ontem.
(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha