quarta-feira, 13 de março de 2013

O pianista de sonhos

Procuro as mimosas encantadas dos teus olhos de ontem, havia luz ensonada que voava sobre os teus dezoito anos de ontem, passeavas vestida de vermelho, e tínhamos acabado de construir um rio, duas pontes e uma casa de poiso, tínhamos uma montanha só nossa, havia árvores no quintal da casa que construímos, e havia pássaros que dormiam nas árvores que viviam no quintal da casa de poiso, que construímos
No nosso quintal,
Uma pista de gelo flutuava na cave do edifício em ruínas, três vezes ao dia, ao pequeno-almoço, almoço e jantar, as drageias da loucura, ele sentava-se numa cadeira de lona, cruzava as pernas, puxava de um cigarro, e não o acendia, observava-o na escuridão das noites, e cruzava os braços, e
Num toque subtil e silencioso,
Ligava o interruptor dos sonhos, no ecrã havia quatro sonhos disponíveis; “das noites sem dormir”, “as madames envernizadas com pincéis de areia”, “de nome sonho” e “as janelas com vidros de cartão”, hesitou
Escolhi “as madames envernizadas com pincéis de areia”, e imaginava homens vestidos de preto, perdidos na noite preta, escuridão entre as palmas afamadas dos barcos pretos, sentados nas esplanadas
Pretas, negras, e mordedelas de caninos chateados com o tédio das pequenas surpresas que o dia inventava, marés de vidro, telhados de xisto, ardósias engasgadas no cu da serra, a montanha em vómitos desassossegados, diarreia e dores de barriga, até mergulharem-se-lhes nos ombros platinados o rio Doirado com sabor a saudade,
Hesitou
No nosso quintal? Tens a certeza? Claro que sim, pensas que sou louca, pensas que vivo dentro de um cubo com faces
Negras?
Não parvalhão,
Com faces cinzentas e invertidas, e confesso-te que quando me perguntam onde está a cabeça, simplesmente que
Não sei, e questiono-me
Qual cabeça? Loucos pensava eu, pode lá ser as faces de um cubo terem cabeça, braços, pernas, lábios, pénis, vagina, e boca?
Negras
Não parvalhona,
Hesitei,
Que, e deixei de acreditar nos cubos com faces onde vivem as mimosas encantadas dos teus olhos de ontem, havia luz ensonada que voava sobre os teus dezoito anos de ontem, passeavas vestida de vermelho, e tínhamos acabado de construir um rio, duas pontes e uma casa de poiso, tínhamos uma montanha só nossa, havia árvores no quintal da casa que construímos, e havia pássaros que dormiam nas árvores que viviam no quintal da casa de poiso, que construímos
No nosso quintal, um cubo, feio, hirto, e sabíamos que o preto vestia-se de noite e corria nas escadas sem corrimão, o preto, negro, a cor mais bela do teu vocabulário, sabes?
Dizia-me ela,
A noite, a escuridão, o céu desprovido de estrelas e luar, as palavras escritas com esferográfica
Com tinta permanente preta,
E oiço-lhes dos olhos também eles negros, vogais à procura de sorrisos, e oiço-lhes dos olhos também eles negros, sílabas com línguas de gato, e sentava-me no lancil do passeio a olhar os barcos que acabavam de morrer quando encostavam à cidade fantasma,
Com tinta?
Preta,
Qual cabeça? Loucos pensava eu, pode lá ser as faces de um cubo terem cabeça, braços, pernas, lábios, pénis, vagina, e boca? Ouvíamos
O quê?
Portas, janelas, janelas com vidros de cartão, mas o que eu adorava eram as... “as madames envernizadas com pincéis de areia”, os guindastes no Porto carregando, descarregando, e às vezes em pausa, fumavam cigarros de enrolar, depois, carregar, descarregar, até que a noite, negra, preta, escura
Se construía como eu e tu construímos
A casa de poiso, o rio, as pontes, as árvores que viviam no quintal da casa de poiso, os pássaros
Que têm os pássaros?
Os pássaros que viviam nas árvores que dormiam no quintal da casa de poiso, e tínhamos duas montanhas, uma minha, outra, tua, e entre nós, nada, apenas um pano de chita pintado de noite, e assim nos separávamos quando a paixão invadia os dias tristes de Agosto...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

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