Eras tua ainda, trazias nos cabelos os fios de noite
que a lua deixou sobre as nuvens de insónia, eras tu ainda e nada
fazia prever o desfecho da tua passagem pela madrugada de Inverno,
desenhava-te nas paredes imprevistas e húmidas do palheiro de
Carvalhais (S. Pedro do Sul), na eira, eras tu ainda, sentia-te
correr até encontrares os pinheiros de algodão que o avô Domingos
tinha na fogueira da velhice, e no entanto
Perdi-te, perdi-te como se perde o vento numa
superfície lisa e na planície imensa sem obstáculos que impeçam a
livre circulação da paixão, escrevia-te silenciosamente as cartas
que nunca enviei, por medo, por falta de tempo, ou,
Porque o vento nunca me deixava, ou porque o vento
me enrolava no campo indefinido de milho com espantalhos em pano e
palha, ora aqui, ora acolá, perdidamente, só, pensando nas
infinitas palavras por escrever, as ditas, e não ditas, quando
chegava a chuva e tínhamos de nos recolher, debaixo do sono, sem luz
eléctrica, e de uma lanterna inventávamos filmes de desenhos
animados, e ainda era tu, sabia-o porque apalpava-te a mãos de seda
e um brilho de diamante acendia a noite escura entre os espantalhos,
também eles, perdidamente,
Sós?
Coisas de mulheres, éramos crianças saltitantes
sobre os arames enferrujados que atravessavam as margens
inconclusivas das manhãs sem literatura, bebíamos, lutávamos sobre
uma cama inventada com sabor a sémen e Luas recheadas com os
sobejados flamingos do rio que atravessava a cidade, dentro da cidade
tínhamos pessoas, mulheres, homens e, pássaros que nunca tinham
experimentado voar,
Por medo, por falta de jeito, ou porque o vento
nunca me deixava, ou porque o vento me enrolava no campo indefinido
de milho com espantalhos em pano e palha, ora aqui, ora acolá,
perdidamente, só, pensando nas infinitas palavras por escrever, as
ditas, e não ditas, quando chegava a chuva e tínhamos de nos
recolher, debaixo do sono, e
Sós? E eras tua ainda, levantávamos-nos cedo,
imaginávamos lençóis de linho estendidos nas cordas bambas que a
tempestade tinha trazido do outro lado da ilha, vivíamos separados
por um túnel de mel, lá fora as gotas de água, as poucas, quando
caiam sobre a tua pele de papel fotográfico, uma luz de iodo se
acendia, e um pequeno trapezista com mãos de aranha voava como os
pássaros que
Por medo, por vergonha,
Nunca tinham experimentado as loucuras do prazer
entre telhados e espantalhos, crescia a manhã, vinhas de longe até
longe, como algumas palavras que nunca se cansam de prenunciar,
escritas, faladas ou murmuradas contra os vidros da janela com
orelhas de madeira, lembras-te? Sós, e ainda eras tu, e ainda tinhas
nos lábios um filete de rosa
(Coisas de mulheres, éramos crianças saltitantes
sobre os arames enferrujados que atravessavam as margens
inconclusivas das manhãs sem literatura, bebíamos, lutávamos sobre
uma cama inventada com sabor a sémen e Luas recheadas com os
sobejados flamingos do rio que atravessava a cidade, dentro da cidade
tínhamos pessoas, mulheres, homens e, pássaros que nunca tinham
experimentado voar,)
Um filete de rosa com sílabas vermelhas, da água
gelada cresciam as estrelas minguas dos teus olhos com sabor a geada,
eras, ainda tu, quando desceram do céu os grandes dentes de marfim
que se acorrentaram aos cadáveres dos barcos encalhados na tua saia,
ouvia-te chorar quando eu entrava em casa fora de horas, dois ou três
dias depois de partir, e apenas te respondia
Andei por aí,
Vagueava como vagueiam as nuvens de prata com
sandálias de couro, os calções acordavam numa praia de areia
branca, linda, e ao longe imaginava tendas de circo com palhaços,
com artistas malabaristas, como hoje, por aqui e colá, entre
espantalhos e fios de seda, entre sémen de maré e o pôr-do-sol que
ainda nos resta e ainda vive em liberdade,
Sentias-me?
E fugias de mim como ainda hoje fogem as palavras
dos caderno preto,
Sós?
Tristes
Ou
Por aí cozinhando caldos em colheres de inox,
Tristes,
(DUAS SIMPLES HORAS, E DAQUI A DUAS HORAS JÁ VOLTO
A ESTAR AUTORIZADO A FAZER AMIGOS POR AQUI, COMO SE A AMIZADE
DEPENDESSE DE REGRAS, NÃO SERÁ ISTO UMA FORMA DE DITADURA?) -
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Ou,
Sós? Tristes porque hoje já não és tu, porque
ontem
Tínhamos as poucas coisas a que chamávamos de
vida, e dois espantalhos (de pano e palha) vivíamos no campo de
milho do tio Serafim, e ao longe, ouvíamos os sinos de Carvalhais, e
numa noite
O vento
Ou
O mar?
Separou-nos como se separam as ervas miseras da
cidade, entre ruas e ruelas, entre espantalhos e os pinheiros de
algodão que o avô Domingos tinha na fogueira da velhice, e no
entanto
Hoje já não tenho medo.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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