domingo, 6 de novembro de 2022

Palavras de outro olhar

 Puxo de um cigarro,

Bebo este café envenenado,

Sentado,

Imagino-te suspensa na minha mão,

Enquanto a alvorada

 

Morre nos teus lábios.

E pergunto a este cigarro

Que me há-de matar um dia

Porque morrem as minhas palavras

Na luz do teu olhar,

 

Porque morre a minha poesia

Na cinza deste cigarro,

Nas borras deste café

Incendiado,

Deste café apaixonado.

 

 

 

Alijó, 06/11/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 5 de novembro de 2022

Uvas da manhã

 Sei que este rio

Que corre nas minhas veias

São os teus braços

Quando durante a noite roubas o mar

E o poisas sobre este peito envenenado

 

E depois o levas para os olhos da lua

Sei que este rio me pertence

Como te pertencem as lágrimas do luar

Quando todos os barcos

Se deitam nos teus seios de nuvem adormecida

 

E deste rio

Oiço o silêncio adormecido dos teus lábios

Quando um beijo prometido

É desenhado com a ponta dos meus dedos

Nas pequenas sílabas do desejo

 

E este rio traz-me a enxada

Com que escrevo na montanha

Os socalcos ausentados da tua sombra

E deste rio recebo as palavras

Que semeio no teu corpo

 

Quando o sol se deita sobre ti

E dos teus braços

Que se passeiam nas minhas veias

Vêm a mim as uvas da manhã

Que me embriagam dentro deste livro em construção

 

 

 

 

Alijó, 05/11/2022

Francisco Luís Fontinha

Coloridos barcos

 Destas mãos com que afago o teu rosto de cereja adormecida

Crescem as palavras que semeio nos teus lábios

Nestas mãos com que acaricio o teu cabelo

Brincam os meus coloridos barcos em papel

E são estas mãos

 

Que todas as noites

Trazem o luar ao teu sorriso

Também são estas mãos

Que transportam o teu corpo

Para a tela da madrugada

 

Destas mãos de equação adormecida

Vivem os pássaros da minha aldeia…

Nestas mãos que te incendeiam as tuas mãos

Quando as minhas mãos dormem no teu peito

E eu durmo nas tuas mãos

 

 

 

Alijó, 05/11/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O voo das frias e pobres e solitárias pedras cinzentas

 Um quadro suspenso na sala nua, num dos cantos, uma poltrona pobre a fria alimentava a insónia que todas as noites se abraçava à janela virada para um escuro quelho, nesse quelho, uma das casas pobres que por ali brincava, imaginava o sol poisado sobre a acácia do senhor Augusto, e debaixo da acácia a menina Florbela lia o pequeno caderninho que o José lhe tinha oferecido pelo Natal do ano anterior.

Florbela odiava o Natal.

Ponto e nada de discussões.

O senhor Augusto acreditava que as pedras cinzentas voavam como voam as gaivotas, como tal, todas as noites, depois de vários dias a construir uma rampa de lançamento, entretinha-se durante horas a ajudar as pedras cinzentas a levantar voo; algumas caiam sobre a acácia onde Florbela, nas tardes felizes, lia o pequeno caderninho que José numa noite de angustia tinha escrito, e em vez de ter sepultado o caderninho junto à acácia, ofereceu-o à doce e querida menina Florbela.

A acácia andava sempre tristinha, quanto à menina e querida e doce Florbela, tinha dias; uns felizes, outros tristes e outros saltava de galho em galho na busca do melhor poema.

Quanto ao caderninho, além de palavras, habitavam nele pequenos rabiscos que faziam recordar os campos de milho de Carvalhais, onde de janela aberta, José escrevia desalmadamente e apressadamente com medo que fosse esta a sua última noite de insónia.

Bom dia, senhor António.

Bom dia, menina e querida e doce menina Florbela.

Hoje não foi ao mar?

Não menina, hoje não fui.

Os barcos de papel estavam estacionados junto à porta da sala, e não acreditando no que assistia, o senhor Augusto, que momentos antes a menina e querida e doce Florbela tinha apelidado de António, observava o José em amena cavaqueira com os barcos de papel e o quadro que estava suspenso na parede fria e nua, ou seria a velha poltrona que era fria e nua?

E o senhor António cismava que todas as noites, enquanto guardava a acácia para não mudar de cor, as estrelas poisavam junto ao mar, depois, tal como as pedras cinzentas voavam como as gaivotas em direcção aos campos de milho de Carvalhais, onde o franganote José, à janela do quarto do meio, enquanto fumava, imaginava as personagens do seu pequeno caderninho em brincadeiras que quase pareciam os meninos e meninas quando saiam da velha escola junto à igreja.

E ela a dar-lhe com o senhor António.

José não imaginava que a menina e doce e querida Florbela odiava o Natal, tão pouco que esta trocava o nome do senhor Augusto por António, e que este último, acendia os cigarros com as grossas lentes que transportava na cara.

O dia lamentava-se de ter acordado, e a doce e querida e menina Florbela, sempre que se aproximava o Natal, entrava em pânico, desmaiava e só acordava em meados de Janeiro; o senhor António deixou de olhar as acácias e o senhor Augusto que já foi António e hoje é José, desenhava círculos de luz com olhos verdes nas paredes invisíveis do beijo apaixonado que de vez em quando se abraçavam aos lábios da menina e querida e doce Florbela;

Sinto a tua falta, querido José!

Minha ou do caderninho?

Bom dia, senhor António.

Bom dia, menina e querida e doce menina Florbela.

Hoje não foi ao mar?

Não menina, hoje não fui.

E a ira era tanta que um dia, de cigarro na boca, pulou a janela do quarto do meio, e já estatelado nos campos de milho de Carvalhais, finalmente adormeceu.

Na sala, a velha poltrona gemia de sono e a menina e querida e doce Florbela, de olhos cerrados, imaginava o mar deitado no colo, depois, pegava na mão trémula do querido José, este erguia-se dos campos de milho de Carvalhais e dizia-lhe:

Querido, posso pedir-te um desejo?

Sim, claro.

Tira o mar que trazes na algibeira e oferece-mo, como me ofereceste o caderninho.

E o José em modos um pouco rudes, mete a mão na algibeira, mas em vez de tirar o mar, tirou o poema que tinha escrito aos filhos do mar e aos irmãos do silêncio: a saudade.

E o senhor António cansou-se de guardar a acácia e de ajudar as pedras cinzentas a voar.

Hoje, dorme sobre uma secretária em madeira antiga na ânsia que alguém o olhe ou lhe diga ao menos,

Bom dia, senhor António.

Bom dia, menina e querida e doce menina Florbela.

Hoje não foi ao mar?

Não menina e doce e querida Florbela, hoje não fui.

E quando o José se ergueu dos campos de milho de Carvalhais já era dia, depois o dia trouxe a noite, e a noite, transformou o senhor António em senhor Augusto…

Como os barcos em papel estacionados junto à sala; uma tragédia, menina e doce e querida Florbela, uma grande tragédia o que aconteceu com o nosso querido José.

É verdade, senhor António.

Hoje não foi ao mar?

 

 

 

Alijó, 04/11/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

 

Deste peito que me despeço

Neste peito

Onde adormeço

E esqueço

Porque em ti me deito

 

Deste peito que me inventa

Neste peito

Que é a paixão

Das palavras em minha mão

E me deixa sem jeito

 

 

Alijó, 04/11/2022

Francisco Luís Fontinha

Livro

 

Escondo-me neste livro

Sou este livro de trapos velhos

Sou as palavras deste livro

Escondo-me neste livro

E nas lágrimas deste livro

 

Desenho nas páginas rasuradas deste livro

O silêncio nocturno da insónia

E deste livro que habita em mim

Erguem-se as estrelas

E morres-me nas mãos como um pássaro envenenado

 

 

Alijó, 04/11/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

O triciclo dos sonhos


 

Pegava-te na mão

E voava sobre as sombreadas sombras das velhas mangueiras,

Pegava-te na mão

E escrevia nos teus olhos

O poema madrugada,

 

Enquanto o meu pai,

Também ele,

Me pegava na mão,

Os três,

Em pedacinhos de silêncio,

 

Corríamos como loucos

Em busca do mar

E dos barcos em papel,

Pegava-te não,

Pegavas-me na mão

 

Sem perceberes que um dia

Pertencerias às fotografias a preto e branco

Que brincam sobre a minha secretária,

Pego num livro

E imagino-te sentado no jardim

 

A semear cigarros,

Pegava-te na mão

E abraçava-te e tu abraçavas-me

E ele abraçava-me,

Como hoje me abraça enquanto durmo dentro deste sonho.

 

 

 

 

Alijó, 3/11/2022

Francisco Luís Fontinha