sábado, 17 de setembro de 2022

Grito

 

Este rio sufoca-me,

Entranha-se-me no peito,

Alimenta a lança que transporto desde a infância,

Que me deixa sem jeito,

Que me provoca demência,

 

Este rio assassina-me,

Corre-me na mão,

Este rio mata-me, este rio é manhã cansada,

Este rio é solidão,

Este rio sufoca-me na madrugada,

 

E quando olho as estrelas,

Este rio é silêncio em pedacinhos de mel,

Este rio é saudade,

Este rio é batel

Contra os rochedos da liberdade,

 

Este rio sufoca-me,

Rouba-me todas as palavras de escrever,

Este rio é luar…

Este rio é o amanhecer

Quando me deito sobre o mar,

 

E de longe vem a mim este rio que me sufoca,

Deste rio que me viu nascer,

Este rio é arte suspensa num pequeno olhar…

Quando a chuva se despede da vida sem querer,

Este rio é a minha alma, este rio é o meu gritar.

 

 

Alijó, 17/09/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

O sono

 Invento o sono,

Invento as palavras que me acompanharão

Quando eu for um barco em pequenos voos sobre o mar,

Invento o sono,

Invento as imagens lapidadas e que poisam sobre o meu corpo,

E sem que eu perceba,

Trago ao pescoço uma corrente invisível…

De muitas palavras.

 

Invento o sono,

Sabendo que transporto nas mãos

A caneta assassina das manhãs de poesia,

Invento o sono,

Porque percebi que da noite alimento as minhas dores,

Sabendo que amanhã chove,

Que amanhã uma criança com fome

Irá para a escola carregando uma mochila sonâmbula

 

E prisioneira das pequenas lágrimas de saudade,

Invento o sono,

Queimo todas as fotografias,

Semeio sobre a tua sombra

As lâminas do desejo,

Invento o sono,

Enquanto sobre a mesa da sala…

Uma pilha de livros se despede de mim.

 

Invento o sono,

Invento o prazer carnívoro dos cinzentos pássaros

Que desde a minha infância habitam no meu peito,

Invento o sono,

Puxo de um cigarro,

Disparo a bala de prata que os teus olhos escrevem na maré…

Invento o sono,

Não percebendo que vivo, não percebendo que respiro… inventando o sono.

 

 

 

Alijó, 16/09/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

O que pensas da paixão, em dias de chuva, minha querida?

  

Descem sobre mim as lágrimas do Céu; percebo que transporto no olhar o pequeno silêncio da manhã e sempre que me descuido, um pedacinho de tristeza se alicerça ao meu peito. E as palavras parecem balas disparadas pela espingarda do desejo.

O que tem paixão em comum com as lágrimas do Céu, meu querido?

Talvez tudo. Talvez nada. Sabias que dentro da paixão existe uma equação sem resolução?

Não. Não sabia, meu querido.

E que a paixão tem vida, tem nome, tem sexo, idade, religião…

És parvo, meu querido.

E que Deus não sabe matemática?

Parvo, parvo, parvo…

Tenho medo da tua mão silenciosa, tenho medo dos teus olhos em profunda tristeza, quando ambos sabemos que dentro de ti habitam as mais lindas recordações de uma infância pincelada pelas marés em cio. Onde anda aquele menino dos calções que se deliciava a olhar o mar e os barcos e a areia branca do Mussulo?

Vive dentro de um álbum de fotografias a preto e branco… e dizem que voa sobre um rio curvilíneo embrulhado em socalcos de medo.

A paixão, meu querido, é o silêncio entre dois olhares e separados por duas rectas paralelas…

Mas duas rectas paralelas encontram-se no infinito, minha querida…

Pois… não sei o que diga.

Imagina dois olhares suspensos na manhã

Sim, estou a imaginar.

Imagina que sobre esses dois olhares, em pedacinhos de mel, descem as lágrimas do Céu

Sim, consigo imaginar.

Imagina agora, meu querido, que esses dois olhares têm um corpo, têm desejos, têm mãos que se entrelaçam nos lábios do mar

Sim, minha querida.

E esses olhares e esses corpos e essas mãos e esses desejos… voam sobre o mar pincelado de beijos, enquanto no peito desses dois olhares, sem que alguém perceba, há um triângulo rectângulo em que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos e

Não percebo, minha querida.

E descem as lágrimas do Céu sobre mim…

Não. Não sabia, meu querido.

E que a paixão tem vida, tem nome, tem sexo, idade, religião…

És parvo, meu querido.

E que Deus não sabe matemática?

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 15/09/2022

(Ficção)

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Complexa equação

 

(á minha mãe)

 

 

Quando regressa a tristeza,

Invento o sono sonâmbulo da madrugada,

Estendo a mão para o rio,

Ergo-me sobre a montanha,

Quando regressa a tristeza,

Desenho-te na vidraça da minha triste janela…

Como se fosses um pequenino pássaro

Em busca de liberdade,

 

Como se fosses a saudade

Da tristeza anunciada,

E caminho por esta estrada,

Só, muito só…

Como se fosses o sol

Das tardes de Verão,

Quando regressa a tristeza,

Invento lágrimas de luar,

 

Como se fosses uma árvore na alvorada

Com estrelas em silêncio

Em sombreado desenhar.

Quando regressa a tristeza,

Escrevo-te nesta pequena folha quadriculada…

Como se fosses uma complexa equação

Numa pedra sentada…

Sem perceberes que a matemática é paixão,

 

É beleza.

Quando regressa a tristeza,

Abraço-me, escondo-me neste quarto escuro,

Como se eu fosse a tua sombra…

Como se eu fosse a tua própria tristeza.

E quando regressa a tristeza,

Puxo de um cigarro…

À espera que a tristeza morra.

 

 

Alijó, 14/09/2022

Francisco Luís Fontinha

Noite

 

Folheio-te como se fosses um livro,

Folheio-te nesta triste manhã,

Folheio-te enquanto vivo,

Enquanto respiro o teu perfume…

Folheio-te enquanto sinto

 

No meu peito a dor das estrelas.

Folheio-te como se fosses o luar,

A luz matinal do cansaço,

Folheio-te nestas marés em lágrima,

Folheio-te nesta madrugada,

 

Triste e sem alma.

Folheio-te meu doce poema,

Palavra semeada no vento…

Folheio-te sem perceber que amanhã

Rasgarei a minha fotografia,

 

E voarei sobre o mar.

Folheio-te doce pedacinho de mel,

Sorriso de abelha,

Folheio-te como se fosses um livro

De poesia,

 

Folheio-te enquanto durmo,

Folheio-te enquanto sentado nesta pedra

Sinto o peso das nuvens cinzentas…

Folheio-te como se fosses um livro

Poisado sobre a noite.

 

 

Alijó, 14/09/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Somos saudade

 

Habitamos em corpos cansados,

Enquanto as flores,

Brincam e sorriem…

Enquanto os pássaros,

Dançam e voam sobre o mar.

 

Somos esqueletos desgovernados

Sob o silêncio da tempestade,

Somos corpos amontoados…

Somos saudade:

Habitamos em corpos cansados,

 

E parecemos as árvores

Quando o vento as tomba sobre a solidão.

Habitamos neste labirinto de cansaço,

Porque deixamos fugir a luz

Que nasce em cada olhar.

 

E em cada olhar,

Entre pedacinhos de mel,

Esconde-se o desejo

E revolta-se este rio doirado…

Habitamos em corpos cansados,

 

Que apenas um coração apaixonado

Consegue desenhar na alvorada…

Porque somos instantes,

Porque somos saudade…

Porque somos fotografias de corpos cansados.

 

 

Alijó, 13/09/2022

Francisco Luís Fontinha