quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Este mar da infância

 Sinto-o…

Este mar da infância

Que nos separa em desejo,

Este mar poema,

Neste mar teu beijo,

Sinto-o…

Este mar desenhado

Entre os nossos corpos de amanhecer,

Entre os nossos lábios de alvorada,

Sinto-o…

Este mar de escrever

Ao teu corpo abraçado;

Sinto-o…

Este mar sem pátria,

Quando nos teus olhos

De amêndoa encantada…

Vê este mar da infância.

Sinto-o…

Quando o teu corpo semeado pelo vento

O meu mar… te deseja.

 

 

Francisco Luís Fontinha

25/08/2022

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Um pouco mais de azul

 Vivíamos dentro de uma pequena caixa de sapatos, tamanho trinta e dois. Quando descíamos a rua, do lado direito, junto à farmácia, ouvíamos as gaivotas que tínhamos trazido de Luanda e quando acordava o sol, às vezes sim, outras, nem por isso, eu inventando noites de luar que partilhava com os velhos triciclos com assento em madeira e que devido à idade, todos os parafusos e porcas rangiam como rangiam os duzentos e seis ossos do meu avô Domingos; antes de o barco zarpar, percebia que a minha mão minúscula era suficiente preguiçosa para desenhar nuvens de despedida nos céus de uma cidade a desaparecer no horizonte, como desapareceram todos os papagaios em papel da minha infância.

O dinheiro era minguo e apenas dava para beijos, carinho e fatias de felicidade, que ainda hoje, passados mais de cinquenta anos, recordo como saudade.

Nunca gostei da escola. Enquanto a professora ensinava as diversas matérias e de casa, todos nós, eu e os meus colegas, levávamos os ensinamentos de respeitar os professores, funcionários e nunca esquecer, os mais velhos; hoje, parece que esses ensinamentos deixaram de existir e os putos, por tudo e por nada, fazem birras imbecis fruto da educação que têm em casa… e uma palmada no rabo nunca fez mal a ninguém.

Quando acordávamos, em pleno Inverno, os cortinados eram substituídos por finos fios de geada, pois as janelas, por cansaço ou outra qualquer razão, eram desprovidas de vidros, que na altura já era um grande avanço tecnológico, já tínhamos ar condicionado natural.

O avô Domingos passeava o machimbombo pelas ruas de Luanda, e quando regressava ao final da tarde, eu esperava-o sentado em cima do portão, porque sabia que receberia abraços e beijos; e trazia-me sempre um pedacinho de mar invisível na algibeira.

Aos Domingos, aproveitava-me da paciência do meu pai e íamos até ao porto de mar olhar os barcos; a minha paixão de criança. Olhar os barcos e inventar círculos de luz sobre o azul-mar que ainda hoje guardo no peito.

E assim fui crescendo, dentro de uma pequena caixa de sapatos número trinta e dois e nunca esquecendo o silêncio do Mussulo.

 

 

Francisco Luís Fontinha

23/08/2022

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Arte – Francisco Luís Fontinha



 

Fotografia abstracta

 

Não posso mais, doutor,

São estas palavras,

São estes rios,

São outros mares,

São outros corpos possuídos,

Doutor,

Enquanto escrevo, morrem pessoas,

Enquanto durmo, nascem crianças,

Enquanto pinto,

Embebedam-se criaturas, poetas e putas,

Doutor…

E a música, doutor?

O que tem a música!

Tem dentro dela o silêncio,

Tem a alvorada,

Tem o medo e o sonho,

E não tem nada.

Doutor.

Percebe agora?

Porque voar é fácil,

Porque dormir é canseira,

Porque sonhar é uma merda,

Uma merda junto à lareira.

Não posso mais, doutor,

São as equações,

São estas tristes fotografias,

São as lápides,

São as flores,

Doutor? Ainda aí está? Junto à árvore?

É a chuva lá fora,

São as acácias a morrer,

São as palavras,

São os ossos a correr.

Porquê, doutor?

E enquanto chove,

As almas gritam,

As enxadas no Douro, revoltam-se…

E os homens?

Ai doutor,

Esses,

São uns covardes,

Tudo aceitam,

Tudo comem,

Como carneiros,

Como ovelhas.

Sabe, doutor?

Não.

Morreu o Zé Gato,

Morreu-me o cão,

O canário,

Uma tristeza, doutor,

Uma tristeza,

Esta aldeia,

Sem beleza,

Sem sol,

Sem água benta,

Só fachada, doutor.

Pura fachada,

São as montanhas a arder,

São as palavras a morrer,

São estes rios,

Tristes,

Frios.

Sabe, doutor?

Não, diz, diz…

São os pulhas que espancam a mulher,

São crianças a sofrer,

Algumas, sabe doutor?

Sofrem antes de nascer,

Sofrem até morrer…

Depois, depois acordam os pássaros,

Libertam-se as nuvens das prisões invisíveis,

Estas sim, as nuvens não são como os homens do Douro,

Revoltam-se,

Gritam,

E o mais engraçado…

Nunca morrem, como nunca morrem os poetas.

Os poetas são eternos,

São canção,

São revolta,

Sim doutor,

Revolta,

Porque estes gajos metem nojo,

Os caneiros,

As ovelhas,

As flores e as abelhas…

Sabe, doutor?

Não, diz,

Sempre acreditei que um dia,

Que um dia…

Sim,

Que um dia sonhar não era uma merda,

Que um dia,

Que um dia, todos os dias, todos os meninos…

Brincavam junto ao mar;

Como brincam os peixes

E as gaivotas,

Como brincam os amores

E todas as paixões,

Que um dia,

Sabe doutor?

Que um dia os homens não guerreavam,

Que um dia, as guerras,

Eram apenas uma fotografia,

Longínqua e abstracta.

E depois, doutor,

Depois a culpa é do macaco;

Coitado…

Coitado do macaco.

 

 

Alijó, 18/08/2022

Francisco Luís Fontinha

Sete enxadas

 

Eram sete lanças de espuma

Sobre o peito amordaçado,

Eram sete madrugadas

De bruma

Na paixão amanhecer,

Eram sete canções e coisa nenhuma,

Enquanto o mar queria adormecer

Sobre o teu corpo deitado.

 

Eram sete enxadas

Rodopiando os socalcos adormecidos,

Eram sete sois e sete rios…

E sete tardes sem dormir,

Eram sete madrugadas,

Em sete dias da semana,

Eram sete lanças de espuma

Sobre a doce tua cama,

 

Eram sete lanças de espuma

Sobre o peito amordaçado,

Eram sete poemas em saudade,

Da saudade do pobre coitado,

Eram sete Invernos à lareira

Do corpo esquartejado,

Eram sete lanças de espuma…

Neste corpo maltratado.

 

 

 

Alijó, 19/08/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Quando do sono emerge a triste pétala de saudade

 Carlota acordou triste. Enquanto se passeava nos lençóis nocturnos da insónia, e sempre que antes de se deitar tinha a oportunidade de olhar-se no espelho da saudade, quase nunca acordava de manhã ou tal como hoje, acordava embrulhada numa finíssima lâmina de saudade.

Descera ao rio durante a noite em pequenos voos rasantes, os barcos sombreados que o luar tinha desenhado sobre o imenso cais onde donzelas de charme dançavam a despedida das naus, aos poucos, começavam a zarpar em direcção à morte, tratando-se de barcos carregados pela idade, dir-se-ia que o fogo seria a melhor forma de desaparecer neste labirinto ténue de tristeza, caso Carlota tivesse aberto a janela para a solidão, todos estes barcos seriam salvos pelas rezas e mesinhas que na aldeia habitam junto às árvores.

Os cigarros chegavam e sobravam para a última viagem da tinta sobre a tela enlameada de lágrimas e, do outro lado do rio, junto à cabana, Carlota adivinhava um fim de tarde mergulhada nos braços de Rita, que sempre que podia, vinha à aldeia para estar junto daquela que conseguia rezar aos pássaros antes de estes poisarem na tela e adormecerem como adormecem as crianças no travesseiro da inocência. Rita percebia que aos poucos a tela lacrimar de Carlota se transformaria num negro enredo que apenas um pincel esquecido no atelier sabia transformar em palavras.

A janela para a solidão. Todos estes barcos seriam salvos pelas rezas e mesinhas que na aldeia habitam junto às árvores e caso um dia Rita trouxesse na pele húmida da manhã as pequenas gotículas do desejo, na aldeia todos seriam coniventes dos doirados beijos entre dois silenciados corpos, enquanto no atelier, uma pequena dança avançava para os lábios do medo, que depois da morte, argamassava os ossos na escuridão cansada das grandes tempestades de saliva, depois, entre as coxas da madrugada, a pedra envenenada desaparecia no rio.

Amas-me, Rita?

Ouvíamos as danças das coxas quando nos teus lábios se percebia que o poema aos poucos mergulhava entre os parenteses da insónia, quando sobre nós, entre lágrimas de silêncio, as vozes nocturnas entranhavam-se em nós, como se entranham na paisagem do loiro trigo as sílabas amorfas da loucura;

Desejo-te muito, Carlota…

Sempre que há luar na tua mão, sempre que tenho sobre o peito a invisível madrugada dos pinceis que apenas a tela absorve entre um círculo com olhos verdes descendo a Mutamba, o trigo percebe que em breve será poeira como o são todos os ossos das roseiras em flor.

Não sabíamos que o desejo era uma nuvem de fome em direcção às esplanadas do Baleizão, que à noite, recebia trapezistas, malabaristas e palhaços de vidro.

Porque me amas, Rita? Quando dentro de ti apenas existe um pedacinho de lua com sabor a chocolate, quando dentro de ti, eu, sou a princesa das noites voláteis sem perceber que já não sou eu, sem perceber que deixei de existir na noite dos tristes triângulos das luzes e cores, que sempre que nos beijávamos no Mussulo, se sentavam na fina areia do pôr-do-sol.

Não vens, Rita?

E sempre que Rita não descia à aldeia e se deitava junto à tristeza de Carlota, esta, acordava embrulhada em tristeza e lágrimas de incenso, que à medida que a manhã avançava em direcção ao bairro Madame Berman era absorvida pelo cheiro da terra queimada;

Assim dançávamos dentro dos pequenos charcos que circulavam as velhas sanzalas e que de vez em quando, junto à noite, ouviam-se os roncos dos velhos carros militares que pernoitavam no quarte do Grafanil.

Um dia, meu amor, todas as pétalas serão tuas e as minhas telas, apenas elas, servirão de poiso às tuas lágrimas.

Hoje acordei triste. Enquanto passeava nos lençóis nocturnos da insónia percebi que nas tuas mãos, doce Rita, brincam as palavras mais belas que só o teu corpo sabe declamar enquanto junto a mim oiço os mabecos em cio em alegres despedidas.

O Mussulo era um encanto quando sabíamos que tudo era apenas uma imagem desenhada num espelho que alguém apelidou de saudade, e eu, chamo de orgasmo.

 

 

 

Alijó, 16/08/2022

Francisco Luís Fontinha

Honra a S. Marçal – Festas de Alijó 2022 – Bombeiros Voluntários Alijó