Em criança, os meus pais,
ofereceram-me um barco com motor,
Passava tardes intermináveis
a construir vestidos para um estúpido boneco que baptizei numa qualquer igreja
clandestina, numa tarde em Luanda; o “chapelhudo”.
Colocava uma enorme bacia
com água e deliciava-me com o meu barco em pequenos círculos com olhos verdes,
nos bracinhos tinha uma pequena almofada embebida em ar para não afundar, e
divertia-me até que as pilhas falecessem.
Nada a fazer,
perguntava-me,
Sempre fui apaixonado por
barcos, papagaios em papel e, vestidos para o meu amigo “chapelhudo”. Do mar, um
imenso cardume de estrelas, verdes, encarnadas e, cinzentas,
Extintas as portas de
entrada, aos poucos, o paquete ausentava-se de mim, mar adentro, confinado pela
tempestade, segredava ao meu pai,
- Tenho fome,
Os cigarros engasgavam-se
na garganta inflamada pela nafta, do outro lado, na piscina, meninas brincavam
com bóias de sabão, o mar fugia e, Luanda desparecia no horizonte; alto mar.
Tenho fome do Mussulo,
das palmeiras eternas nas noites recheadas de neblina e, como sempre, nos meus
versos, uma saudade enorme de um rio que mais tarde me viu suicidar; junto ao
Tejo,
Passei uma noite debaixo
da ponte Oliveira Salazar, quase não me lembro das estrelas, manhã cedo, em
direcção ao Porto de Lisboa, vi um magala dilacerado pelo silêncio,
suicidava-se aos poucos com shots de Vodka e Uísque, mais tarde,
Ontem,
Percebi que aquele palhaço
era eu, vinte anos depois.
Sentei-me, peguei-lhe na
mão e, com pequenos toques infundados por debaixo da mesa, sem que ninguém
percebesse, ia escrevendo o poema da saudade,
E, da saudade,
Um menino de porcelana, loiro
com caracóis que o pai resolveu numa tarde dizimar (cabelo à homem),
Coisas dele,
Minha sina foi ser
caixeiro-viajante, de terra em terra, de Oceano em Oceano, percorri todas as
palavras escritas com o olhar,
Amanhã
Amanhã reescrevo o poema
da saudade,
Pincelados de cinzento,
nos olhos a nostalgia do silêncio, olhos rasgados pela tempestade, ao longe, S.
Tomé e Príncipe, Las Palmas de Gran Canaria e, Ilha da Madeira, Lisboa aproximava-se,
dentro dos caixotes em madeira, coisa nenhuma, meia dúzia de tarecos e
saudades.
- Tenho fome do Mussulo, uma
saudade enorme de um rio que mais tarde me viu suicidar; junto ao Tejo,
conheço-te desde sempre, aqui, acolá, além-mar,
Âncoras ao pescoço,
drageias de incenso para adormecer, porque nas mãos trazia sempre a cartilha da
sanzala abandonada,
Dorme.
Ai que dorme.
E, dorme desde então;
dizem que abraçado ao pescoço dela.
Chorou. Dentro das
lágrimas viam-se os botões de rosa da madrugada, da pensão, alguns gemidos,
friestas no gesso apodrecido e, apagou-se nos braços da amante.
O coração tinha recusado
horas extraordinárias e, no pulso, o relógio do sono.
O mar.
A mãe segurava-o enquanto
ele desenhava gaivotas coloridas em papel envelhecido; notícia de última hora!
O mar, também ele, tinha
morrido nas lágrimas envergonhadas das manhãs junto à Fortaleza; barcos e
canhões limitados, com sede na Rua do Azeite, número quatorze.
De herança, deixou três
búzios e uma enxada de prata.
Francisco Luís Fontinha
Alijó, 10/08/2021