terça-feira, 20 de outubro de 2015

Sem cabeça


O inferno estava próximo, do corredor entranhava-se no meu corpo o cheiro a enxofre e a gajas nuas,

Menos tabaco nesses cigarros…, gajas no inferno?

E canteiros recheados de malmequeres, crisântemos e orquídeas selvagens, imperfeito, o vidro estilhaçava-se, ficou sem cabeça, ficou sem coração, e ficou com o medo misturado nos óbitos grãos de areia, ainda hoje acredito que um objecto depois de crucificado… permaneça o mesmo objecto, mas com formas e cheiros e desenhos…

Menos tabaco, amigo, menos tabaco,

Diferentes, tornam-se ausentes, tornam-se miúdos brincando no musseque, os charcos, o capim descendo a rabina, o miúdo do bibe acreditava na liberdade, e é tão difícil ser-se livre nesse País, tão difícil meu pai, tu sabes

Menos tabaco, menos,

Tu sabes que vivi encerrado entre quatro paredes invisíveis, tu sabes que vivi entre três janelas sem vista para o mar, mas sentia-o no meu quarto,

Lembras-te, filho? Os Domingos junto ao Porto e os barcos pareciam cancelas suspensas na madrugada, lembras-te, filho? Os Coqueiros, as gaivotas comendo os Coqueiros, e tudo apenas imagens a preto e branco do meu imaginário, porque, meu filho

Sim, pai?

Lembras-te do Mussulo?

Sim, pai, sim… a areia recheada de lençóis brancos, a poeira do cansaço vomitando languidas lâminas de azoto, e depois, e depois regressava a noite, dormias, sonhavas, gritavas… e eu, eu sem dormir, comer,

Ao longe, meu amigo, ao longe o inferno, as gajas, as nuas gajas junto à porta do inferno,

Louco, menos tabaco nesses cigarros, menos,

Ao longe a agonia do fim de tarde agachado em cima de um telhado em zinco abraçado a um livro, não sabia ler ainda, mas lia-o, absorvia-o, como hoje o faço, e não sabia ler ainda,

E tu, pai, e tu emprestavas-me os teus livros, e eu, eu dilacerava-me com o cheiro do papel, com as letras, com as imagens, com as tuas palavras “estes livros não são para a tua idade” como se houvesse idade para se manusear e cheirar e “foder” um livro… vigava-me, riscava-os, tal como as paredes do corredor, riscos, riscos, um livro entre gemidos, um livro em pleno orgasmo… Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…

Desaparecem todas as palavras, o inferno estava próximo, do corredor entranhava-se no meu corpo o cheiro a enxofre e a gajas nuas, pensei (estou em cais do Sodré) não, não estava, nunca lá estive e nego-o, absolutamente,

Menos tabacos nesses cigarros, menos

Aproximava-me, lentamente a minha verticalidade diminuía, sentia-me um miúdo de bibe gritando, berrando, “fodendo” livros com uma caneta de tinta permanente, e nada, até hoje, nada, morreu ele, morri eu, morremos todos.

 

(ficção)

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Terça-feira, 20 de Outubro de 2015

Palavras rasgadas


Quem éramos que hoje não somos o que éramos!

Quem somos, hoje, aqui, quando ontem éramos apenas alguns pedacinhos de vidro, sós, tristes, emagrecidos, algures numa cidade, perdidos, esquecidos…

Quem éramos que hoje não somos,

O que éramos, o que fomos,

Nada,

Pó,

Poeira enlatada,

Porcaria,

Caldeirada,

Palavras rasgadas,

Éramos,

Não o somos mais…

O que éramos,

O que fomos,

Talvez um dia seremos…

Restos de jornais,

Amantes,

Não amantes,

Jamais…

Porque nunca seremos o que éramos,

Porque somos aquilo que nunca fomos

E nem quisemos ser,

A dor,

O prazer,

A cama,

O teu corpo,

Era,

E hoje recordamos o que éramos…

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Terça-feira, 20 de Outubro de 2015

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A ténue solidão


(Liberdade para Luaty Beirão e seus companheiros)

 

O amor encastrado nos teus lábios,

Os olhos vomitando lágrimas nos rochedos cansados,

O triste olhar das madrugadas,

Que só as gaivotas conseguem perceber,

As tuas minhas palavras,

Sem vontade de as escrever,

Sentido,

Sonhando,

Não saber

Sabendo

Que o teu corpo mergulha na cânfora manha acorrentada,

Uma lápide,

Sem nome

Sem nada…

Não quero a textura do aço

Quando sou chamado à noite sem razão,

Grito,

Sofro,

E abraço

A ténue solidão…

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Segunda-feira, 19 de Outubro de 2015

domingo, 18 de outubro de 2015

O medo da paixão


Fontinha – Outubro/2015
 
 
Ontem tinha medo do escuro,
Meu amor,
Hoje tenho medo da paixão,
Dos pássaros mais tristes que habitam o meu jardim,
Ontem, ontem não,
Meu amor,
Hoje tenho medo das pedras, porque não falam,
Porque, também elas, tal como eu,
Não amam,
Nem choram,
Ontem sentia na minha mão o cansaço da vida,
A não alegria de viver,
Fingia a partida,
Fingia amar sem saber que fingia…
Fingir que não sofria,
Hoje, meu amor,
Hoje tenho medo da paixão…
Sofrida,
Vencida,
Porque ontem tinha medo,
Medo do medo,
Mas hoje, meu amor,
Hoje aprisionei o medo num cubo de vidro,
Vejo-o, toco-lhe nas faces…
Mas ele deixou de pertencer aos vivos…
E é apenas uma palavra sem significado.
 
Francisco Luís Fontinha – Algures fora de Alijó
Sábado, 17 de Outubro de 2015
 


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Os livros e as palavras


Tínhamos no corpo o sorriso do desejo,

Tínhamos no peito as espadas do prazer cravadas,

Sentíamos a dor dos beijos na escuridão,

Sentíamos as lágrimas das madrugadas,

Acordados… e em vão,

Tínhamos os livros e as palavras,

As gotículas de suor quando o sol poisava sobre nós,

Ao final da tarde,

Gemíamos a cada verso declamado,

Sentíamos o peso das pálpebras quando abríamos a janela…

E o rio abraçava-nos como se fossemos duas crianças inventadas,

Brincando junto ao mar…

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Sexta-feira, 16 de Outubro de 2015

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Carta a um fantasma


Percebia-se nos teus olhos o esconderijo da noite,

Tínhamos entre nós uma parede invisível e um cortinado em veludo,

Percebia-se nos teus olhos o cansaço das manhãs sem rumo,

E enquanto clareava o esconderijo da noite, sabias que seria o último beijo,

A última palavra,

O último adeus…

O último livro, o último eléctrico para o abismo,

Lisboa continua viva, fervilha, e os jardins onde te sentavas deslumbraram a tua ausência,

Esqueleto infeliz,

Em vidro,

Os cacos,

 

Os grãos de areia descendo a calçada em direcção ao rio,

Percebia-se nos teus olhos o esconderijo da noite,

O silêncio da vaidade,

A loucura por objectos caros, raros, coisas imbecis…

Que só mulheres como tu… sabem apreciar,

Coisas imbecis…

 

Fúteis, como tu, fútil, mimada, menina das searas envenenadas na solidão das paredes pintadas,

Percebia-se no luar o teu olhar,

O outro luar, a outra avenida sem saída…

O outro olhar,

Não o teu,

Porque esse… vendeu-se por migalhas,

E evaporou-se num Sábado de neblina,

Entre transeuntes e feirantes,

Velharias e vigaristas,

Chapéus de palha…

E perfumaria pirateada,

Que alguém como tu, fútil, consegue odiar.

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

Quinta-feira, 15 de Outubro de 2015

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A morte da verdade


Fontinha – Outubro/2015
 
A estátua que habitava no teu peito
Esta sentada, hoje, numa cadeira sem jeito,
Brinca, hoje, num jardim amarrotado por mãos inanimadas,
Como são tristes todas as madrugadas
E todos os versos do poeta,
Como são tristes todas as manhãs embriagadas
À mesa com um qualquer pateta,
Um imbecil encurralado na noite
Esperando o acordar de um relógio sem alma,
Chora, acredita nas lágrimas do sofrimento,
Chora, e inventa o inferno
No corpo do vento…
 
A estátua… não se cansa de dançar
Sobre a tua pele grená…
Os lábios manchados de sangue,
Os braços entranhados na face de um inocente,
Chora, acredita na liberdade,
Chora, acredita na saudade
Dos ausentes corpos de esferovite,
Grita, grita contra o muro invisível da prisão,
Morre a verdade,
Morre o ditador em pedacinhos de cacimbo…
Rasga o convite
E fica esquecido no tédio limbo…
 
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 14 de Outubro de 2015