foto: A&M ART and Photos
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Abandonaste-me e enviaste todas as tempestades que
assombraram o meu velho cubículo de areia, a cubata tinha uma
pequena janela com imagens de paisagens despidas, nuas, e
travestidas, da sanzala chegavam até mim os uivos dos pássaros
magoados pelas lâminas do final da tarde, havia pequenos charcos nas
imaginárias covas do pavimento térreo, terminara a chuva, começava
a noite, e o velho homem de vestes emprestadas pelo também velho
compadre tinha acabado de roubar todas as estrelas do céu, olhava-o,
e entranhava-se-me a escuridão fria e penumbra da noite em pequenas
construções, abandonaste-me e tinhas-me pintado de negro,
Olhava-me no espelho do guarda-fato, e de mim
sobejava uma imagem em papel com palavras inaudíveis, inacessíveis,
palavras inventadas pela teoria do caos, abelhas, moscardos,
ventoinhas com motores a diesel, e claro, sempre da janela da cubata,
as imagens como feras de cera correndo sobre a procissão à volta do
musseque, tinha-lhes medo, pintado de negro, fugi, escondi-me,
transformei-me em Cinderela amachucada, primo meu, nuvem tua, rio
dele, e porque desejavam as feias pétalas de incenso navegar na maré
adocicada dos rebuçados de açúcar que o avô trazia na algibeira e
distribuía no final do dia?
Nunca, nunca o entendi, como hoje não entendo a tua
ofegante mistela de cores dentro do teu peito..., imagino-te uma tela
branca com desenhos inanimados, cadáveres de porcelana em pequenos
pedaços milimétricos, e de peso insignificante, desprezível,
imagino-te como um balão voando sobre as janelas dos plátanos em
frente à rua da escola, imagino-te, não imagino, percebo, deixei de
entender as tempestades dentro do meu cubículo de areia, sinto as
lágrimas invadirem a minha triste cubata, oiço lá bem longe, da
vizinha sanzala os uivos dos mabecos embriagados pelas tuas garras de
perfume fingido pela claridade dos cristais das sarzedas imagens das
janelas de prata, havíamos imaginado zumbis sobre o zinco, e o
último machimbombo com destino à cidade acabara de partir...,
nunca, nunca o entendi, como hoje
Acabaram-se as tertúlias e as noites de vadiagem,
acabaram-se as viagens ao interior das caves transeuntes por meninas
de plumas e asas em cartolina, acabara-se-me a vontade de me sentar
num banco de jardim, e esperar, que regresses, viva, morta, semi-nua,
nua, em revolta, esperar, sentado, a contar as pedras que uma criança
a brincar no parque atira contra uma pequena árvore, vou em duzentas
e tu, ainda não presente, desisto, levanto-me, imagino-me caminhando
oceano adentro, costa acima, saltito por dentro da ondulação com
barbatanas de espuma cinzenta, acabara-se-me os sonhos, mar adentro,
vou longe, caminho, caminho, levanto-me do banco de ripas acabadas de
pintar
“Cuidado – Pintado de Fresco”
E... como hoje, acabadas de pintar, mergulhadas na
água transparente que durante a noite desce sobre a sanzala,
entra-me pela pequena janela da cubata, saio de dentro dela, como um
recém-nascido, choro, grito, sorrio... invento-te regressando dos
montes com pinheiros e bandeiras de pano cetim como quando íamos à
Feira da Ladra comprávamos pequenos objectos sem significado, e
imagino-me nas mãos da parteira, não me calava, berrava, chorava,
fazia com que o zinco da cubata se erguesse e voasse sobre o vizinho
musseque, como gaivotas, anos depois, em círculos À volta dos
cacilheiros e de uma ponte em ferro, sentava-me, não no banco com
ripas de madeira, sentava-me no chão, fumávamos cigarros e
imaginávamos o vento bater na face rosada dos jardins de Belém,
E além, depois do grande momento quando as pequenas
sanzalas se transformaram em jardins de púrpura, acreditei que nunca
mais me “abandonavas e enviavas todas as tempestades que
assombravam o meu velho cubículo de areia, a cubata tinha uma
pequena janela com imagens de paisagens despidas, nuas, e
travestidas, da sanzala chegavam até mim os uivos dos pássaros
magoados pelas lâminas do final da tarde, havia pequenos charcos nas
imaginárias covas do pavimento térreo, terminava a chuva, começava
a noite, e o velho homem de vestes emprestadas pelo também velho
compadre tinha acabado de roubar todas as estrelas do céu, olhava-o,
e entranhava-se-me a escuridão fria e penumbra da noite em pequenas
construções, abandonavas-me e tinhas-me pintado de negro”,
acreditei que nunca mais pronunciavas o meu enfeitiçado nome...
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha