foto: A&M ART and Photos
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Sentia os rosnares engasgados dos automóveis
ensanguentados pela paixão que em noites de escuridão, descia,
solenemente, tristemente, às vezes, digo-o, alegremente, Porque não?
Se o meu peito era o porto de abrigo dos teus braços de arame
fingindo fileiras de madrugadas sobre as sobrancelhas antes de
acordarem as manhãs, depois, o mesmo de sempre, a tempestade de
sempre, a vida, sempre a vida em vida, completa, complexa, imunda,
desperta como as flores do teus olhos, meu amor, meu amor das árvores
envelhecidas, e do mostrador de um relógio, tu, a tua pele, os teus
ossos em plasmas de fim de tarde, as rugas, os teus medos, o aço do
teu peito quando o poisavas em mim, entre nós, réstias de insónia,
angústias que provocavam os cigarros depois de fumados, havia no
tecto do desejo, uma linda colorida lâmina de luz, camuflada, como
tu, escondido entre o zero e o mil novecentos e oitenta e oito, nove
vezes nove, atravessávamos o rio, olhávamos a ponte enferrujada
pelos beijos das gaivotas sobrepostas nas rimas que sobejavam dos
loucos poemas que tu inventavas, e sentias-me dentro de mim, e
sentia-te deitado no perfume que atravessava a ruela entre gemidos e
assobios do amolador de tesouras,
Eras tu?
O sangue, o teu, o meu, sabia-nos a poemas
envenenados pela neblina de uma cidade flutuante, cacilheiros de
ossos procuravam lânguidas línguas de prazer, comíamos coisas
esquisitas, frágeis, como corpos acabados de nascer, tínhamos o
prazer guardado dentro da gaveta da mesa-de-cabeceira, sobre nós,
uma pilha de livros, e nervos, e plantas que eu, tu, que nós nunca
percebemos para que serviam, apenas viviam, como nós, simples
sombras, complexas manhãs de iodo, a areia fundia-se e filmava-nos
como um espelho de luz a absorver os orgasmos das palavras esquecidas
na ardósia que havíamos suspendido na parede da sala de jantar,
amar-me-ias?
E eu sentia, as plumas do teu peito deambularem nas
janelas gradeadas que escondiam o sofrimento das nossas almas, não,
não consigo recordar os Sábados entre feiras de velharias e as idas
à feira da ladra, ouvia-te numa roleta de casino clandestino,
apostava-te todo, e saía-me um par de ases, porra, fico teso, uma
semana, um mês, dois, três meses de miserabilidade, e no entanto,
sabia-me feliz, subia cambaleando as escadas que me levavam aos teus
braços de roseira bravia, indomável, e trazia na boca as sombras do
hálito do vodka misturado com sumo de laranja, deixa-te sobre a mesa
um bilhete de despedida, “regresso dia 23”, e sabias que eu,
jamais regressaria, porque a minha vida é como uma roleta do casino
clandestino,
Sempre, sempre saem asses, e sempre que eu perco, e
no entanto
Contente, feliz, ausente, sou uma roleta em círculos
em busca de uma par de ases, apenas um, um só,
Tinhas a certeza que era eu?
Diziam-me que sim, e no entanto, tu, e no entanto,
eu, e no entanto, nós, dois corpos misturados na penumbra solidão
procurando uma, apenas um, par de ases,
Pouca, coisa, a nossa triste história,
Tinhas a certeza que era eu?
Nem eu, nem eu,
Regressamos a nós.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha