Sou filha do vento e
nasci num final de tarde, tenho cabelo loiro como o oiro, tenho asas
como as gaivotas, em revolta, tenho olhos verdes com luzinhas
encarnadas, como as madrugadas, depois de uma longínqua caminha na
praia dos sonhos, sou filha
da vida quando
construída, destruíste-me os ossos e fizeste deles sumo de laranja
com rissóis de camarão, a tarde estava límpida, linda, brilhante,
ausente a tua melancolia paixão pelos livros, da vida, e eu
sou uma filha da puta,
destruíste-me cansada manhã, à luta, à carga que os costados
ainda aguentam, sou burra, de velas arregaçadas até aos ombros,
levanta-se o mastro luzidio da paixão, e ela
a caravela mais linda do
oceano,
entre curvas e sombras,
e ela às marradas contra
a porta de entrada, cinco da manhã, porta encerrada, fui despedida,
lia-se na tabuleta míope
por razões de segurança
é proibido sonhar,
filhos da puta, pensava
eu, miúda da vida quando construída, destruíste-me os ossos e
fizeste deles, e fizeste de mim
uma mula sem asas,
e fizeste de mim
uma caravela sem velas,
e fizeste de mim
uma puta sem pernas, sem
nome, sem jazigo, caixão, cave, ou noite embrião, uma puta
solteira, filha do vento, e nasci, e nasci num final de tarde, junto
ao Tejo, numa esplanada com cadeiras, uma esplanada com mesas,
plastificadas
os ossos, as pernas, as
asas, as casas, eu
uma puta sem alicerces,
segurança social, uma
casa sem janelas, um rio
sem barcos, ponte, um jardim nu, moribundo, húmido entre as sílabas
assassinas da primeira comunhão, que raiva, ódio, não gostava de
gravatas, sapatos pontiagudos, e asas, e fatos de pano barato,
o cigano
estás bonito miúdo,
e ela,
sou filha da chuva, sou
filha do vento,desculpem-me, ajudem-me, lancem todas as cordas para o
mar, e numa fúria de raiva
salvem-me esta puta filha
do vento,
uma caravela sem vela,
uma puta sem pernas, sem braços, sem cabeça, uma árvore miúda, à
lareira, feliz natal ouve ela
salvem-me,
porquê,
o cigano,
que giro, está lindooo,
e eu era lindo quando
vestido de pedaços de xisto com laminados de madeira, o serrote em
cuecas fugindo corredor fora, o barco enfeitiçado mergulhava nos
olhos verdes da puta encarnada manhã de sábado, saí de casa,
travesti-me de homem livre, como o vento, pai da puta, que no final
de tarde, ouvia os roncos magistrais das bocas ocas e loucas que
o cigano,
que a maré provoca nos
corpos quentes,
caliente meu corpo de
cetim doirado,
o cigano,
lindooo,
eu sei, eu sei quando me
olhava ao espelho,
as vaidades, as paredes
guiadas pelas raízes dos finais de Outono, ouviam-se as
transpirações das desejosas camas de vinte e cinco euros, à
janela, há janela, uma fotografia com um miúdo nos braços do
cigano
lindooo,
e eu respondia-lhe que os
sapatos pontiagudos me magoavam, e ele
quando começares a
voares passa-te, e deixam de doer,
lindooo,
que a maré provoca nos
corpos quentes,
caliente meu corpo de
cetim doirado,
o cigano,
lindooo,
e gemias, e atravessavas
as paredes de porão em porão, descias as escadas até ao ínfimo
milímetro de poço, e dizias-me
sou filha do vento e
nasci num final de tarde, tenho cabelo loiro como o oiro, tenho asas
como as gaivotas, em revolta, tenho olhos verdes com luzinhas
encarnadas, como as madrugadas, depois de uma longínqua caminha na
praia dos sonhos, sou filha
uma puta sem alicerces,
segurança social, uma
casa sem janelas,
sou filha do vento, sou
filha da chuva, sem braços, sem pernas, sem asas, sou
lindooo,
e nunca mais vi o cigano
de camisola azul.
(texto de ficção não
revisto)
@Francisco Luís Fontinha