domingo, 23 de dezembro de 2012

Maria Feliz

Nasci numa aldeia cinzenta, e todas as pessoas traziam na cabeça uma flor de lótus, uma pequena ribeira caminhava sem destino entre os canaviais e os choupos velhos e caducos que viviam em comunhão de bens, felizes no casamento, tinham três filhos, duas raparigas, e eu

eu continuo sem saber o que sou,

as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, sisudo, chato, um travesti de trinta e dois anos, bancário, regressava a casa depois de um longo dia de trabalho, apanhava o eléctrico, contava as pombas até chegar à porta de entrada do prédio, entrava, começava a subir as escadas tranquilamente, no patamar do primeiro andar ainda era o Carlos, subia, subia, e quando chegava ao quinto andar,

agora sei o meu nome,

Maria Feliz, entrava em casa, descalçava os sapatos altíssimos e colocava as pernas sobre a mesa de mármore que jazia no centro da sala de estar, pegava no comando da aparelhagem sonora, carregava no PLAY e sempre o mesmo CD no seu interior

agora sei o meu nome,

Wordsong (AL Berto)

e ele,

ela,

tinham saudades dos tempos da infância quando apenas tinham como memória uma aldeia cinzenta, apodrecida, a madeira das traves e dos barrotes, de vez em quando, pingava um líquido sujo e espesso, e quando lhe passava o dedo e levava-o à boca

ela percebia que eram lágrimas com mel,

chovia dentro de casa, tínhamos um cão a que dávamos o nome de REX, e quase sempre o gajo desobedecia-nos, traquina, as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, e nós deliciávamos-nos com os poemas

eu continuo sem saber o que sou,

ele

sisudo,

ela

levantava-se do sofá, acabava de despir-se, e quando se olhava no espelho e percebia que não tinha sobre si outra qualquer roupa, nem vestígios dele, corria até à casa de banho, abria a torneira da água quente, deixava-a borbulhar como uma panela ao lume com estrelas e pedaços de néon, e aos poucos e silenciosos sonhos do mar, começava numa carícia intensiva, até se cansar, até perceber que ela era ela, até

ele

sisudo,

ela

ela percebia que eram lágrimas com mel que o seu corpo derramava como se fossem a seiva envenenada das árvores de papel, sisudo, e pendurava no armário o Carlos, e a lua apoderava-se dela, e a lua escrevia no corpo dela,

viste o Carlos?

ele

sisudo,

ele

chato,

ele, que todos os dias se levantava de madrugada, Maria Feliz ia ao guarda-fato, tirava o Carlos, vestia-se, raramente tomava o pequeno-almoço, deixa-a sobre a cama até que o cair da noite se agarrava às janelas do quinto andar,

sisudo,

agora sei o meu nome, agora percebo a cor da aldeia onde nasci, vivi, cresci..., e quase

morri,

ela

viste o Carlos?

chato, sisudo, as árvores que nem os malditos pássaros encarnados queriam sentar-se sobre elas, é triste, era triste a solidão dos dias, e percebia que as minhas irmãs

não gostam de mim, sempre me odiaram, viste o Carlos? Apenas palavras para os poucos transeuntes ouvirem, porque nas minhas costas

o Carlos é um chato, e sisudo, e

as ruas deixavam de pertencerem-me, e

ela

viste o Carlos?

e elas sempre souberam que nunca existiu nenhum Carlos, e elas

as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado

numa rua de Cais do Sodré, e quase

morri.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

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