Nasci numa aldeia
cinzenta, e todas as pessoas traziam na cabeça uma flor de lótus,
uma pequena ribeira caminhava sem destino entre os canaviais e os
choupos velhos e caducos que viviam em comunhão de bens, felizes no
casamento, tinham três filhos, duas raparigas, e eu
eu continuo sem saber o
que sou,
as raparigas desde muito
cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão
enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite
desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão,
sisudo, chato, um travesti de trinta e dois anos, bancário,
regressava a casa depois de um longo dia de trabalho, apanhava o
eléctrico, contava as pombas até chegar à porta de entrada do
prédio, entrava, começava a subir as escadas tranquilamente, no
patamar do primeiro andar ainda era o Carlos, subia, subia, e quando
chegava ao quinto andar,
agora sei o meu nome,
Maria Feliz, entrava em
casa, descalçava os sapatos altíssimos e colocava as pernas sobre a
mesa de mármore que jazia no centro da sala de estar, pegava no
comando da aparelhagem sonora, carregava no PLAY e sempre o mesmo CD
no seu interior
agora sei o meu nome,
Wordsong (AL Berto)
e ele,
ela,
tinham saudades dos
tempos da infância quando apenas tinham como memória uma aldeia
cinzenta, apodrecida, a madeira das traves e dos barrotes, de vez em
quando, pingava um líquido sujo e espesso, e quando lhe passava o
dedo e levava-o à boca
ela percebia que eram
lágrimas com mel,
chovia dentro de casa,
tínhamos um cão a que dávamos o nome de REX, e quase sempre o gajo
desobedecia-nos, traquina, as raparigas desde muito cedo começaram a
fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas
amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como
desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, e nós
deliciávamos-nos com os poemas
eu continuo sem saber o
que sou,
ele
sisudo,
ela
levantava-se do sofá,
acabava de despir-se, e quando se olhava no espelho e percebia que
não tinha sobre si outra qualquer roupa, nem vestígios dele, corria
até à casa de banho, abria a torneira da água quente, deixava-a
borbulhar como uma panela ao lume com estrelas e pedaços de néon, e
aos poucos e silenciosos sonhos do mar, começava numa carícia
intensiva, até se cansar, até perceber que ela era ela, até
ele
sisudo,
ela
ela percebia que eram
lágrimas com mel que o seu corpo derramava como se fossem a seiva
envenenada das árvores de papel, sisudo, e pendurava no armário o
Carlos, e a lua apoderava-se dela, e a lua escrevia no corpo dela,
viste o Carlos?
ele
sisudo,
ele
chato,
ele, que todos os dias se
levantava de madrugada, Maria Feliz ia ao guarda-fato, tirava o
Carlos, vestia-se, raramente tomava o pequeno-almoço, deixa-a sobre
a cama até que o cair da noite se agarrava às janelas do quinto
andar,
sisudo,
agora sei o meu nome,
agora percebo a cor da aldeia onde nasci, vivi, cresci..., e quase
morri,
ela
viste o Carlos?
chato, sisudo, as árvores
que nem os malditos pássaros encarnados queriam sentar-se sobre
elas, é triste, era triste a solidão dos dias, e percebia que as
minhas irmãs
não gostam de mim,
sempre me odiaram, viste o Carlos? Apenas palavras para os poucos
transeuntes ouvirem, porque nas minhas costas
o Carlos é um chato, e
sisudo, e
as ruas deixavam de
pertencerem-me, e
ela
viste o Carlos?
e elas sempre souberam
que nunca existiu nenhum Carlos, e elas
as raparigas desde muito
cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão
enfaixado
numa rua de Cais do
Sodré, e quase
morri.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó
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