Um livro esquecido sobre uma mesa de vidro, os olhos
tristes da gaivota quando sobrevoa o oceano acreditando que as horas
são pedaços de papel à deriva no mar desenhado na areia por uma
menina com lágrimas de vidro em frente a um espelho de pano,
dividia-me entre manhãs de desencanto e tardes de loucura, não
falando nas noites
Ternura,
Pintávamos os nossos corpos invisíveis com
acrílicos que o velho do jardim das Pilas Murchas nos ofereceu no
dia de S. Valentim, tu primeiro, eu depois, pintamos o céu e as
estrelas e quando nos abraçávamos perguntavam-nos
Vocês são a noite?
Dizíamos-lhes que sim, claro, porque ter medo,
vergonha, dizíamos-lhes que éramos a noite disfarçada de janelas
com vidro duplo, cortinados de açafrão, e na porta de entrada para
a gaveta onde guardávamos os pincéis, as tintas, as telas, a mãe
das telas, e os filhos das telas, desenhos, construídos, em
construção, alguns desmaiados e à espera da chegada do 112, outros
Amarfanhados como ervas daninhas recheadas de restos
de cigarro e pólen de haxixe que saboreavam os desassossegos lábios
das abelhas revoltadas contra as árvores do recreio, as tuas
lágrimas de luz morriam como morreram todas as coisas que amei, os
livros, as crateras dos desejos secretos quando a noite me vinha
buscar e eu sentia-me transportado para dentro do teu coração de
aço, outros
Sem vida, já, estendidos pelo corredor, o cheiro
putrefacto da tela misturada com a tinta, um cadáver de quadro sem
tecto, morada, destino, ou vida, pindérico pequeno-almoço que me
serviam na enfermaria e eu sabia das lágrimas circulares depois de
lhes calcular a área e o respectivo perímetro,
Qual é o perímetro de uma lágrima?
Partindo do princípio que as lágrimas não são
círculos, porque têm volume, e que o perímetro de uma lágrima
calcula-se elevando a tristeza ao cubo multiplicando pela cor dos
olhos
Qual é a cor dos olhos dela? Verdes, verdes, tem a
certeza?
Então diria que o perímetro da lágrima dela é de
três vírgula catorze verdes searas lineares...
(Pintávamos os nossos corpos invisíveis com
acrílicos que o velho do jardim das Pilas Murchas nos ofereceu no
dia de S. Valentim, tu primeiro, eu depois, pintamos o céu e as
estrelas e quando nos abraçávamos perguntavam-nos), se éramos a
noite disfarçada de noite, tu, respondeste-lhe
Não, nós somos a noite disfarçada de amor, com
beijos, com asas, com vento e palavras parvas, com tardes cinzentas,
horas embebidas em ponteiros de relógios suspensos nas teias de
aranha das madeixas dos limoeiros da dona Aninhas, do galo que não
se cala, todos os dias, rabugento, enferrujado, rouco como os
cigarros de arame, tristes, tristes as tuas mãos com silêncios em
penas amarelas, verdes, azuis, encarnadas
Pareces um palhaço com ventoinhas nas pernas e
embrulhado num tecido quadricolor, depois tiveste o azar do teu
hipercubo se apaixonar por um gato, o gato mordeu-o e o hipercubo
fugiu, depois veio-te a carta do tio Hilário a comunicar-te que
Venho por este meio informar Vossa Excelência que os livros da
prateleira número três, rés-do-chão – Direito, por minha morte,
pertenceram à Biblioteca Pública da Aldeia das casas de vidro
(Que se foda o velho, nunca gostou de mim..., que
meta os livros pelo rabo acima)
Quero lá saber dos livros, do amor, do tio Hilário,
do perímetro, do volume, ou da área de uma lágrima, Porquê? Sou
mais feliz por saber essas coisas?
Não quero saber,
Não me interessa,
Quero lá saber da paixão do meu hipercubo por um
ranhoso gato, mimado, filho único como eu e maluco, como diz o povo,
ai o povo diz tanta coisa
Só não diz às vezes aquilo que devia dizer,
Como a gaveta mortuária onde dormem as telas
mortas, como a gaveta dos sonhos onde dormem um par de chaves e uma
lanterna, como
Quero lá saber dos livros, do amor, do tio Hilário,
do perímetro, do volume, ou da área de uma lágrima, Porquê? Sou
mais feliz por saber essas coisas?
Não quero saber,
Não me interessam,
Como será um hipercubo loucamente apaixonado por um
gato? Consegues imaginar?
Claro que consigo
É como nós,
Um dia é verde, outro dia é encarnado, e às vezes
alterna entre o azul e o amarelo, e nunca, e nunca elas se queixaram
por eu não saber calcular a área, o perímetro ou o volume de uma
simples lágrima, porque o segredo está
No coeficiente de tristeza.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha