terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Chuva da desgraça


Chove dentro de mim

O silêncio da madrugada,

Habito este corpo de porcelana queimada,

Como os pássaros do meu quintal ao entardecer…

Ardem,

Fogem da minha mão até se esconderem no infinito,

O deserto regressa numa jangada em pedra polida…

Triste,

Cansada,

Triste,

Amordaçada,

Chove dentro de mim

O silêncio da madrugada,

E das noites embriagadas,

Oiço o teu ventre sorrir na alvorada,

Uma lágrima de sono,

Não é nada,

Apenas o reflexo das palavras em suicídio

Que alimentam o poema da desgraça,

Tudo é triste,

E tudo morre numa tábua triturada pela solidão,

Que não resiste,

E assiste…

Ao complexo rio da saudade,

Faço-me à estrada,

Levanto as amarras deste porto nocturno do desgosto

Que trago sobre os ombros,

Vivo na cidade cansada,

Vivo na rua das esplanadas de vidro

Que a morte inventa na minha voz,

Este sítio vadio que não vem nos livros,

Este cansaço de pedra que tritura o pequeno-almoço ao acordar,

Triste,

Cansada,

Amordaçada… esta barcaça em delírio,

Este simples rio

Que traz nos lábios o frio,

A ardósia do desassossego na ponta dos dedos,

A mão alicerçada no medo encapuçado pelo destino,

Morro,

Vivo,

E sinto… e sinto a explosão do sofrimento

Sobre os rochedos dos tristes milagres enjoados…

Este cansaço,

Meu amigo,

Este cansaço meu amigo que me atormenta dia e noite…

Sem que eu saiba

Que chove dentro de mim

O silêncio da madrugada,

Stop.

Amanhã será outro dia nas páginas da desgraça…

 

 

Francisco Luís Fontinha

28/02/17

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Cansaço


Canso-me das palavras que não dizes
E escondes nas paredes do silêncio,
Canso-me das palavras que não escreves
E semeias nas searas abandonadas do sono,
Canso-me da ausência
Quando o meu corpo tem peso, centro de massa…
E voa em redor das andorinhas em flor,
Canso-me dos beijos desenhados
Na tela da solidão, e tão ínfima é a minha mão
Que afaga o teu rosto de xisto,
Canso-me das planícies onde te escondes,
Como se fosses uma criança amedrontada,
Palavras,
Cansaço,
Canso-me dos rios obsoletos das cidades embriagadas…
Depois da despedida,
Canso-me tanto, tanto meu amor,
Que até me canso de ti…
Canso-me do sol,
Da lua,
E da noite,
Canso-me da escrita,
Canso-me da leitura e dos desenhos sem nexo…
Que brotam do meu sorriso,
Canso-me da luz,
Canso-me da luz e das ruas sem saída,
Que se perdem numa qualquer avenida,
Canso-me,
Canso-me das palavras daninhas, nos terrenos baldios,
Canso-me, tanto meu amor,
Que este cansaço vai acompanhar-me até à morte…



Francisco Luís Fontinha
20/02/17

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Vida de marinheiro



Triste a vida de marinheiro,
Prisioneiro
Neste porto sem nome,

Estes socalcos me enganam
E abraçam o rio da saudade,
Estes socalcos lapidados na sombra da noite
Quando regressa a verdade,
E tenho no corpo o medo da revolta,
E tenho nas mãos o silêncio que não volta,
Estes socalcos da triste vida de marinheiro,
Prisioneiro
Neste porto sem nome…
E distante da madrugada,

Nem idade,
Nem dinheiro,

Triste,
Triste a vida de marinheiro
Assombrado pelo amanhecer do desejo
Que se perde num beijo…

Nem cidade,
Nem dinheiro,

E no tempo se esquece o coração de prata
Das marés loiras que o mar desajeita
E rejeita
Contra a corrente,

Triste a vida de marinheiro…
Triste,
Triste na cidade ausente.



Francisco Luís Fontinha
17/02/17

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A última ceia


Nesta cidade me suicido

Com a lâmina de barbear

Que sobejou da última ceia…

As árvores acompanham-me até ao túmulo

Onde dormirei até ao amanhecer,

Depois, depois serei levado por uma jangada de solidão,

Levo na algibeira as amarras,

A pequena bagagem, o indispensável,

Alguns livros,

Papel, caneta… e pincéis,

Nesta cidade me suicido

Como um cão raivoso,

Revoltado com as notícias do jornal,

Vende-se,

Compra-se oiro,

Aluga-se apartamento junto ao mar…

E do meu corpo nem conseguem falar,

Apenas que o silêncio deixou de habitar as minhas tristes mãos de porcelana,

O cansaço,

O cansaço de escrever sem perceber onde nasci,

O que faço aqui? O que faço nesta cidade pintada a preto-e-branco,

Os muros dormem enquanto desenho um sorriso na terra queimada pelo vento,

Sinto o azoto do amor descer a calçada e alicerçar-se no rio,

Sinto a alvorada a comer-me…

Nesta cidade onde me suicido,

Com a lâmina de barbear…

Da última ceia… o perigo de acordar antes do sono,

O ultimato lançado pelo desejo para que eu seja depositado num aterro sanitário…

Não, não me agrada a ideia de ser comido por coisas simples

Que alguém deitou fora…

E morre o poema sem que o poeta se levante do chão ensanguentado pelos beijos da madrugada,

O papel arde,

A caneta sonolenta, tomba no pavimento encharcado de sémen…

Apagam-se todas as luzes,

Apagam-se todos os silêncios…

E apenas eu, só, nesta cidade enraivecida pelo cacimbo.

 

 

Francisco Luís Fontinha

16/02/17

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Sentir



Sinto no corpo
O peso das esplanadas em solidão,
Sinto no corpo
Os rochedos do medo,
Junto à noitinha…
Quando regressa o sonho,
Sinto no corpo
A tua voz a gritar NÃO,
Desde a madrugada
Até ao anoitecer,
Sinto no corpo
As clarabóias do sofrimento,
Os alicerces das cidades em destruição…
E uma gaivota revoltada
Poisa sobre a minha sombra, e dorme na minha mão,
Sinto no corpo
A saudade, o silêncio… e a vaidade,
Sinto no corpo
Os livros que nunca vou escrever,
Por indiferença, por preguiça… por tudo e por nada,
Este peso,
Este corpo,
Que foge em demandada…


Francisco Luís Fontinha
13/02/17