segunda-feira, 21 de novembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Porquê Natália?

O link, amor, com beijinhos,
Natália,
Quando as gaivotas entre o vento e as ondas do mar desapareciam na chuva miudinha da tarde, as últimas palavras de Natália O link, amor, com beijinhos, desligou o interruptor da noite sem antes colocar sobre a mesa-de-cabeceira uma rosa que acabava de despregar-se do teto, cerrou os olhinhos, colocou as mãos trémulas sobre as árvores do peito, e partiu,
“E claro que o texto está bem escrito, e claro que Lobo Antunes não é para todos, e claro que para todos são as bibliografias de CR7 ou do camarada Mantorras, esses sim, verdadeiros campeões de vendas, porque Lobo Antunes é só para quem pode”, e quem pode manda, deslizava nos ponteiros do relógio a voz do Arrependimento,
Sobre a toalha uma chávena de lágrimas e o açucareiro submerso no vazio dos dias, a falta de dinheiro, a fome, as dívidas, a doença, o teto desaba e junto ao rodapé as nuvens que atravessam o tejo, e a Natália desesperava, e a Natália acreditava que o futuro não existia, e amanhã o sol não vai acordar, e o Arrependimento diz-me que não, não desaba o teto, não descem as nuvens até ao rodapé, e o sol acorda todos os dias,
E mesmo uma espingarda apontada à cabeça, esta, por motivos técnicos, pode encravar, e não me venhas com as estórias de sempre, Natália, tudo tem solução, exceto a morte, mas ficares sentada com o gás aberto não quer dizer que vás morrer, porque se não tiveres que morrer naquele momento não morres,
Sabes, Natália, sim diz, conheci uma gaivota que voou, voou, voou em direção ao céu, e quando já se encontrava muito longe da terra e quase em conversas com deus, começou a arder e desfez-se em pedacinhos de papel, deus olhou-a, e nas cinzas escreveu,
O link, amor, com beijinhos,
Natália…


(texto de ficção)

As folhas esquecidas no quintal de Luanda

Entalado na garganta das coxas da mãe,
E as primeiras silabas, e as primeiras vogais, a primeira palavra esquecida na fralda de pano, as primeiras frases, os textos pendurados no estendal na sombra das mangueiras, no canto esquerdo da alcofa um pequeníssimos rádio a pilhas vomitando silêncios, e ele no sono profundo da tarde de Luanda, e nessa altura não sabia o significado de mar, e nessa altura não percebia o que eram barcos, e desconhecia que as gaivotas eram gaivotas e não papagaios de papel, nessa altura, eu era feliz, segreda-me ele,
- Fixar os olhos no gesso do teto e contar as estrelas da noite,
Segreda-me ele, o corretor do novo acordo ortográfico engoliu-me o C do TECTO, e no interior de milhões de estrelas um C à procura do teto, e repete-se na língua empapada da sopa de legumes, nessa altura eu era feliz, derramava as palavras amolecidas que saiam do intestino e mergulhavam na fralda de pano, O cheiro intenso a poesia!, recorda hoje a mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve, ele sentia as palavras na finíssima pele das nádegas e com um sorriso chamava as lágrimas aos olhos verdes do amanhecer, o rádio a pilhas cessava silêncios, e irritava-me olhar o enumerado de fuças em romaria à minha volta, como se eu fosse um deus minúsculo, rabugento e que passava a maior parte dos dias em sonhos perdidos nas planícies de Angola, enquanto folheio o álbum de fotos do meu pai,
- E uma e duas e três e quatro, em voz alta, e quando estou no momento de gritar a quinta estrela, finco os dentes no biberon, um arroto levezinho, e bons sonhos meu filho, com um beijo na testa, a mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve,
Lembro-me do meu pai em calções e a atirar pedras para o rio, ou seria eu?, questiono-me, esqueci-me e enquanto mastigo os pedacinhos de fotos do álbum dele, não pedras, meras paisagens deslumbrantes estacionadas debaixo da mesinha na sala de estar, lembro-me do meu pai a transporta-me às cavalitas, eu e os textos poisados sobre os ombros cansados da semana em corridas pelos musseques,
- O pigmeu de orelhas pontiagudas de braços no ar pensando que tocava nas estrelas,
Os musseques pesavam-lhe nos ombros e agarravam-se-lhe às pernas, e a bedford amarela em labaredas cinzentas pela boca,
Parvo hoje ainda não escrevi nada e só o farei à noite,
E a bedford amarela a derreter palavras no fim de tarde, os enzóis dos pássaros presos às folhas das mangueiras,
- E talvez consiga tocar na sexta estrela, pensava o filho da mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve,
E diga-me lá, senhor, diga-me lá, lamentava-se a mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve, e se não fosse eu quem lhe matava a fome,
E ainda ele entalado nas minhas coxas e as palavras dele misturadas com o meu sangue, e diga-me lá senhor, o que seria de mim se não fosse ela, os meus desabafos nas folhas de mangueira esquecidas no quintal de Luanda.

(texto de ficção)

A sala de espera

Na sala de espera um frenesim de vozes, uma senhora porque o governo já devia ter caído, outra, que vai cair amanhã, uma outra, junto ao umbral da porta, dizia,
- se cair eu apanho-o,
E eu apenas queria fazer a depilação. Nada de mais. É assim tão difícil?
Vou à janela e puxo de um cigarro, eu sei que não devia fumar, mas também não devia ouvir certas coisas e oiço, e das conversas que se construíam na sala de espera de nada me interessavam; eu só pretendia fazer a depilação…
Em cima de uma mesa as revistas do costume, as perguntas parvas do costume,
- beijei o meu namorado, será que estou grávida?
E eu que já nem me lembro da ultima vez que me veio o período,
- será que estou grávida? Mas não beijei o meu namorado…
No rádio alguém pede Tony Carreira,
- que mau gosto,
Na parede um crucifixo olha-me, deseja-me, e eu a ficar sem jeito,
- talvez porque hoje tenho a saia curta de mais,
Começo a sentir-me possuída com aquele olhar, incomodada, mas…
- mas Cristo também devia desejar mulheres,
E eu feliz por me sentir desejada…
O cigarro musicalmente vai percorrendo as avenidas da minha espera, e do fumo, do fumo vejo as sílabas a saírem pela janela, em baixo, na rua, um homem muito mal vestido pede cigarros,
- um cigarrinho,
E as sílabas a construírem frases, e das frases… palavras que se encaixavam na minha mão, e a minha mão não um livro,
- uma mão,
Um livro perdido na janela do primeiro andar, um livro onde não posso escrever mais nada, e ele aos tropeções nos paralelos da calçada,
- minha senhora, um cigarrinho por favor…
Não fumo,
Na sala de espera um frenesim de vozes, uma senhora porque o governo já devia ter caído, outra, que vai cair amanhã, uma outra, junto ao umbral da porta, dizia,
- se cair eu apanho-o,
E eu nem o apanho nem o derrubo, eu só quero fazer a depilação.
- será que estou grávida? Mas não beijei o meu namorado…
E o meu namorado junto ao rio a contar algas, e de cigarro na boca envia mensagens às gaivotas, e as gaivotas não até mim, eu no primeiro andar, desejada por um crucifixo há não sei quanto tempo naquela posição, esquecido na parede juntamente com as fendas,
- há quanto tempo se formou o universo?
Nada de mais. É assim tão difícil?
(texto de ficção)

A doce almofada da noite

Adormeço os meus lábios na doce almofada da noite,
A minguada sombra do meu corpo projetada na parede, Estou tão magro, mãe!, pergunta-me porquê, e que nem eu sei, segredo-lhe com um beijo na face amarrotada dos anos e das canseiras da vida,
Provavelmente das geadas de inverno, provavelmente dos socalcos do Douro, provavelmente da idade, provavelmente porque envelheço duas vezes ao ano, adormeço várias vezes por noite, e caminho diversas vezes durante o dia em círculos à volta da fogueira, a cinza do cigarro dilata-se na minha mão que não serve para nada, nem para acariciar o rosto de uma flor, nem para poisar sobre o vento,
E ficas tão bonito quando desfazes a barba!, e digo-lhe que não sei, Não sei mãe, nunca me olho no espelho do quarto, tenho medo, e possivelmente deixe de desfazer a barba e cortar o cabelo,
Ser livre como as árvores de ramos ao vento, voar como os pássaros e poisar onde me apetecer, ser livre enquanto o meu rosto adormece na doce almofada da noite, e as minhas mãos chapinham nas ondas do mar, Fiquei desiludido, mãe!, a voz dela cansada Porquê, meu filho?, e as minhas palavras colam-se no silêncio da ténue luz do candeeiro, Li um poema de AL Berto em que ele dizia “o mar entra pela janela”, e noite após noite, Mãe!, nem o mar nem notícia boa,
Porquê, Mãe?,
Adormeço os meus lábios na doce almofada da noite, em vez de o mar entrar pela janela entram-me as ruas de Lisboa, o Tejo e os cacilheiros, Belém e o comboio para Cascais, os jardins e a ponte, os carros estacionados na peugada do engate e mangalas que faltam pela janela e se suicidam à porta de armas, e o sargento em pedacinhos de enjoo apanha os desperdícios que vacilam pela calçada, ao fundo o rio, E adormeço, mãe!, e quando acordo, Quando acordo, mãe, não existe Tejo, não existem cacilheiros, não existe Lisboa, O que existe, mãe?, apenas o cheiro dos bares de Cais de Sodré às cinco da manhã, e a pé até Belém acredito que amanhã está sol, E sabes, mãe?, vou à janela e não sol,
Nuvens penduradas no céu e vontade de fugir.

(texto de ficção)

domingo, 20 de novembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Sem as palavras deixo de existir

As palavras que escrevo
São as sombras que sobejam da noite,
As palavras murcham
E o peso da angústia alicerça-se em mim
Como um vulcão
Dentro da montanha,
As palavras que escrevo
São as sombras que sobejam da noite
E nunca mais regressam,
Ausentam-se no paralelepípedo da maré
E encostam-se à coluna vertebral
De um cargueiro em aflição,

Deixei fugir as palavras
E deus brinca com elas
Sobre uma mesa de mármore
E uma jarra de gladíolos,

As palavras que escrevo
São as sombras que sobejam da noite,
As palavras murcham
E o peso da angústia alicerça-se em mim,
E sem as palavras deixo de existir,
E o peso da angústia
Sobre o meu corpo carbonizado pelo perfume das rosas
Evapora-se entre os eucaliptos juntos ao rio.

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Desejo

Desejo-te quando as páginas do teu corpo
São folheadas pela minha mão
E os meus olhos leem
As gotinhas de suor da tua pele

Desejo-te quanto te transformas em poema
E te deitas sobre o meu corpo
E me abraças
E dos teus lábios crescem as sílabas da tarde

Desejo-te quando o livro do teu corpo
Dorme dentro dos lençóis da biblioteca
E sobre ti todos os poemas
E dentro de ti… Eu desejo-te