segunda-feira, 21 de novembro de 2011

As folhas esquecidas no quintal de Luanda

Entalado na garganta das coxas da mãe,
E as primeiras silabas, e as primeiras vogais, a primeira palavra esquecida na fralda de pano, as primeiras frases, os textos pendurados no estendal na sombra das mangueiras, no canto esquerdo da alcofa um pequeníssimos rádio a pilhas vomitando silêncios, e ele no sono profundo da tarde de Luanda, e nessa altura não sabia o significado de mar, e nessa altura não percebia o que eram barcos, e desconhecia que as gaivotas eram gaivotas e não papagaios de papel, nessa altura, eu era feliz, segreda-me ele,
- Fixar os olhos no gesso do teto e contar as estrelas da noite,
Segreda-me ele, o corretor do novo acordo ortográfico engoliu-me o C do TECTO, e no interior de milhões de estrelas um C à procura do teto, e repete-se na língua empapada da sopa de legumes, nessa altura eu era feliz, derramava as palavras amolecidas que saiam do intestino e mergulhavam na fralda de pano, O cheiro intenso a poesia!, recorda hoje a mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve, ele sentia as palavras na finíssima pele das nádegas e com um sorriso chamava as lágrimas aos olhos verdes do amanhecer, o rádio a pilhas cessava silêncios, e irritava-me olhar o enumerado de fuças em romaria à minha volta, como se eu fosse um deus minúsculo, rabugento e que passava a maior parte dos dias em sonhos perdidos nas planícies de Angola, enquanto folheio o álbum de fotos do meu pai,
- E uma e duas e três e quatro, em voz alta, e quando estou no momento de gritar a quinta estrela, finco os dentes no biberon, um arroto levezinho, e bons sonhos meu filho, com um beijo na testa, a mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve,
Lembro-me do meu pai em calções e a atirar pedras para o rio, ou seria eu?, questiono-me, esqueci-me e enquanto mastigo os pedacinhos de fotos do álbum dele, não pedras, meras paisagens deslumbrantes estacionadas debaixo da mesinha na sala de estar, lembro-me do meu pai a transporta-me às cavalitas, eu e os textos poisados sobre os ombros cansados da semana em corridas pelos musseques,
- O pigmeu de orelhas pontiagudas de braços no ar pensando que tocava nas estrelas,
Os musseques pesavam-lhe nos ombros e agarravam-se-lhe às pernas, e a bedford amarela em labaredas cinzentas pela boca,
Parvo hoje ainda não escrevi nada e só o farei à noite,
E a bedford amarela a derreter palavras no fim de tarde, os enzóis dos pássaros presos às folhas das mangueiras,
- E talvez consiga tocar na sexta estrela, pensava o filho da mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve,
E diga-me lá, senhor, diga-me lá, lamentava-se a mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve, e se não fosse eu quem lhe matava a fome,
E ainda ele entalado nas minhas coxas e as palavras dele misturadas com o meu sangue, e diga-me lá senhor, o que seria de mim se não fosse ela, os meus desabafos nas folhas de mangueira esquecidas no quintal de Luanda.

(texto de ficção)

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