quinta-feira, 4 de maio de 2023

Rio da alvorada

 Todos, todos somos um rio,

Um rio que é filho da espuma da manhã,

Todos, todos somos um rio,

Uns perderam alguma coisa,

E os outros tudo perderam,

Mas o entre perder e o ganhar…

Somos um rio de sorriso,

Um rio… um rio que correr para o mar,

 

Todos, todos somos um rio,

Um rio de sono,

Somos um rio sonâmbulo…

Somos um rio de palavras,

Somos todos,

Somos todos um rio…

Um rio que nasce…

Em cada dia de alegria.

 

 

 

Alijó, 04/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Gaivota

 Uma gaivota de sono

Poisa nos teus lábios,

E fico tão triste,

Tão triste… meu amor…

Porque não sei como afoguentá-la dos teus lábios

E tenho medo de que ela me roube o teu olhar,

 

Ai meu amor…

Como são tristes as janelas do teu silêncio,

Como são tristes,

Meu amor,

As palavras das minhas madrugadas,

Enquanto penso se essa maldita gaivota…

Te vai roubar esse lindo olhar,

 

Cartas que te escrevo

Nas suspensas manhãs de enxofre,

Enquanto nas tuas mãos ardem as flores do teu luar…

E essa maldita gaivota com asas de veludo

Que não se cansa de te rondar,

 

Qualquer dia,

Regressarão as tristes Primaveras,

De que nunca tive medo,

Medo não tenho,

Medo nunca o terei…

Mas preocupa-me essa gaivota de sono

Sem nacionalidade…

E filha da lua,

 

E dizem que o pai é a saudade.

Qualquer dia,

Um outro dia do meu dia,

Teremos dentro de nós as derramadas lágrimas da manhã…

Sem que regressem as rimas nocturnas do teu púbis,

 

E sendo assim,

Que faz essa gaivota,

Meu amor…

No silêncio dos teus lábios?

 

Uma gaivota de sono

Poisa nos teus lábios,

E fico tão triste,

Tão triste… meu amor…

É que nunca sei…

Se essa maldita gaivota te vai roubar o olhar,

Ou se essa maldita gaivota…

Apenas me quer chatear,

 

Olha, meu amor…

Tal como a madrugada,

Quando acorda,

Me lança ao cardume do silêncio,

E apressadamente,

Tenho de correr para o próximo apeadeiro do desejo,

 

E de comboios nada percebo,

Mas parece que não interessa nada perceber de comboios,

Não interessa nada perceber de aviões ou de barcos…

Tive muitos barcos, meu amor,

Muitos barcos em toda a minha vida…

E quase que sou capitão da marinha mercante e afins…

Estacionava-me nos teus braços…

E zás,

Lábios com lábios,

Boca com boca,

Cabelo com cabelo…

 

E quando lhe perguntaram qual é era a raiz quadrada de seiscentos e vinte e cinco…

Não sei, professor…

Nunca o soube,

Que tens uma gaivota de sono nos teus lábios…

 

E da rua da masturbação número vinte e cinco,

As flores da tia Joana em decomposição,

Todas elas mortas,

Todas,

Todas elas em profundo silêncio…

Enquanto rezávamos que a tarde nunca terminasse,

 

E como é triste, meu amor…

Como é triste a partida daqueles que amamos…

Um filho perde o pai,

Perde a mãe,

Perde o seu melhor amigo,

O amigo já tinha perdido o melhor amigo…

Um pai e uma mãe…

Perdem tudo, quando perdem um filho…

E eu,

Nada,

Aqui sentado sobre uma pedra de sono,

Cinzenta,

 

Rabugenta,

E tenho medo, meu amor,

Tenho medo dessa gaivota de sono…

Tenho medo do sono que pertence a essa gaivota,

Tenho medo do feitiço da lua

E das garras da alvorada,

Cansaço do corpo que protege o silêncio,

E depois,

Bom…

Depois vinham a nós as primeiras palavras da noite,

 

E a noite traz-nos de tudo,

Traz-nos as sementeiras da noite anterior,

Traz-nos o desejo do próximo dia…

E sempre que posso,

Rezo à minha mãe…

Que me proteja,

E que nunca me falte a paciência para um novo dia,

 

Abraço-me à imensidão deste mar selvagem,

Onde os cardumes da paixão sobrevivem apenas com duas gotas de água…

E um pequenino silêncio de sono,

O teu sono,

Esconde-se na minha mão,

 

Remexo os papeis,

Todos,

Encontro tudo,

Tudo,

Menos aquilo que procuro,

Apenas, meu amor,

Apenas preciso de um pedacinho do teu corpo…

Onde desabafar as alvoradas que perdi em Luanda,

 

Os vidros sem janelas,

O vento aprisionado na tua boca…

E se me perguntassem qual era a cor do silêncio…

Certamente,

Com toda a certeza,

Responderia…

Não o si,

Nunca o soube,

 

As cartas voam…

E só a maldita dessa gaivota é que não levanta voo,

Essa gaivota de sono,

Sem dó nem piedade…

Que se alapou nos teus lábios…

E que não me deixa aproximar…

E tão pouco escrever o que penso sobre a equação de Deus,

 

Não sei, meu amor,

Não sei se a resolva…

Ou simplesmente a deixe ficar, tal como está, em cima do guarda-vestidos…

O professor Carlos Andrade, põe-te fino Francisco…

O professor Luís Mesquita, põe-te fino Francisco…

E o Francisco que também é Luís,

Nunca sabe se quando está a falar com os professores…

É o Luís poeta,

Se é o Luís escritor de estória sem fundo…

Se se é o pintor…

Que mal acordou, após nascer…

Escreveu nos olhos da doce mãe…

Amo-te,

 

As madrugadas são como os vidros,

Sem janelas,

Sem barcos de engate,

(e se eu pudesse afugentar essa maldita gaivota de sono.)

Mas não o posso fazer,

Não,

 

Quando do silêncio,

Uma pequena árvore se ergue no teu cabelo…

Um pequeno sorriso se desenha nos teus seios de esmeralda…

E depois,

Nada,

Como sempre,

Sento-me sobre esta pedra cinzenta…

E rezo,

E rezo muito…

Que nunca tenha asas de verdade.

 

 

 

 

Alijó, 04/05/2023

Francisco Luís Fontinha

As mansardas

 Até que o sono os separe, e que o vento lhes traga as mansardas com vista para o mar, depois veste o seu melhor fato, calça os seus melhores sapatos, e desaparece na sombra que a tarde começou a construir junto ao rio.

Era assim todos os dias.

Logo que acordava, puxava do seu primeiro cigarro, diga-se que o primeiro cigarro acorda sempre em pedacinhos de ternura e preguiça, acendia-o utilizando duas pequenas pedras, e ficava por ali…

A olhar as primeiras lágrimas da manhã.

Um dia, um dia disseram-lhe que estava proibido de vestir o seu melhor fato, de calçar os seus melhores sapatos e ainda muito pior…, estava rigorosamente proibido de desaparecer na sombra que a tarde construía junto ao rio.

Percebeu que lhe tinham retirado a liberdade de pensar e de ser.

E entre o ser e o não ser e o pensar, brinca aquele que nunca o foi, que é o invejoso e que quer ser, aquilo que o outro já foi.

Abro a janela.

Fecho a janela.

Sento-me sobre a cama.

Levanto-me da cama.

E eu que sou um apaixonado por pássaros, que amo todos os pássaros, e isto e aquilo…

E estes, sem qualquer respeito por mim, respeito nenhum, enviam-me um telegrama em forma de merda; o telegrama mais temível que o ser humano pode receber.

E o sono os separou enquanto uma abelha construída em fibra de carbono poisou na sua mão de porcelana, e confesso, de abelhas em carbono nada percebo, apenas que as mansardas com vista para o mar, para o meu mar, são as colmeias da madrugada, quando acorda o dia, e sobre as árvores, um triciclo a motor desenha círculos de insónia com lábios em quadriculado sorriso…

Nasce assim, a minha primeira abelha em fibra de carbono;

A doce “agora não posso”.

 

 

 

Bragança, 04/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Estrela semeada

 Semeio esta estrela de cor silêncio

Em teus lábios de prazer luar,

Semeio esta estrela que ainda não tive coragem de apelidar,

E não sei se ela vai sobreviver,

Ao vento,

À chuva,

Ao desejo…

Ou ao teu doce olhar.

 

Semeio esta estrela brilhante,

Sem nome…

Nos teus lábios de prazer luar,

E esta estrela me guia

Quando subo a montanha…

Semeio esta estrela de cor silêncio

Na tela da vida,

Quando da vida…

 

Apenas recebo os beijos do mar.

Semeio esta estrela desejada

Nos teus lábios em feitiço,

Quando esta estrela semeada…

É poema, é madrugada,

Semeio esta estrela de cor silêncio

Em teus lábios de prazer luar,

Em prazer teus lábios da noite apaixonada.

 

 

 

Bragança, 04/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Pedacinho de luar

 Há na tua mão

Um pequeno pedacinho de luar

Há no teu olhar

A manhã desenfreada e apressada

Das lágrimas à madrugada

Enquanto o silêncio se traveste de canção,

 

Há na tua mão

O alegre sorriso da alvorada

Deste relógio com fome

Há na tua mão

Um pequeno pedacinho de luar…

No luar sem nome,

 

Há na tua mão

A palavra que semeio nos teus seios em poesia

Quando o poema deixa de viver

E se cansa do dia

Há na tua mão

Um pequeno pedacinho de luar… no luar do meu escrever.

 

 

 

 

Bragança, 04/05/2023

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 3 de maio de 2023

O poeta dos sonhos

 Dormíamos na copa das árvores.

Regressava a noite,

O Alfredo, sonolento, encostava-se ao interruptor do silêncio…

E segundos depois, acordavam todas as estrelas.

Meia-dúzia de putas…

Desciam a rua e encostavam-se a Cais do Sodré,

Regressava o vento lá dos lados do Tejo,

Depois, descíamos da copa das árvores,

Desenhávamos um abraço na doce manhã…

Fumávamos um cigarro,

E nada,

 

E nada vezes nada,

O zero medo quando os planetas machos procuram os planetas fêmeas,

Da varanda, a linda serpente embrulhada nos braços do Alfredo,

E tínhamos medo, e sempre que olhávamos o Tejo,

Um petroleiro com fome poisava em nós…

E acabava sempre, mas sempre, nas algibeiras da insónia.

Dias depois, o Alfredo…

PUM.

Dizem que por desgostos de amor,

Pegou no revolver…

E zás,

Um tiro nos cornos e dizem,

Dizem que ganhou um par de asas,

Asas,

Ou talvez cornos,

Já nem sei…

Passou tanto tempo, meu amor,

Tanto tempo escondido dentro daquele pedaço de silêncio,

E há tanto tempo que o Alfredo deu o tiro nos cornos…

Pedia-lhe perdão,

E ela,

Nada,

Zero vezes zero…

O zero primeiro milagre dos tristes embondeiros,

 

Ouvíamos os mabecos esfomeados em busca de sexo,

Num dos bolsos da gabardine,

O isqueiro,

E no outro…

A pedra e o livro das mortalhas,

E sabíamos, e sabíamos que brevemente,

Estávamos nos braços de um do outro,

 

Erguia-se da cadeira, olhava cada livro estacionado na biblioteca…

Depois, depois segredava-me…

Não gosto de ti.

Que se foda, pensava eu, e pensava bem,

E pensam bem todos aqueles que pensam.

Porque pensam.

Porque estão bem,

E quando tudo está bem…

Não se muda uma palavra ao poema.

Eu lia-lhe AL Berto no sorriso de um pedacinho de sémen,

E ela gostava tanto dos poemas de AL Berto…

Que eu, rapaz nada ciumento,

Sentia os meus primeiros capítulos de ciúme;

Os poemas de AL Berto.

 

Regressava a noite nos lábios da coruja,

Ele nunca soube o significado de ser amado…

Ele nunca soube o significado de ser desejado…

E, no entanto, ele amava todos os barcos do oceano,

E, no entanto, ele morreu, sem que todos os barcos do Oceano soubessem.

Despia-a na lentidão de Milan Kundera,

Acariciava-lhe os lábios entre os pequenos destinos de luar,

Começava a escrever no seu corpo todas as palavras que tinha recolhido durante a noite…

Mas como sempre, ela, horas depois, evaporava-se e depois de entrar na neblina sobre o Tejo…

Coitado do Alfredo,

Coitado,

Um tiro nos cornos…

E um par de asas em camurça.

 

Eu desenhava nas frestas da parede em gesso, junto a um crucifixo,

Todos os seus gemidos,

Todos os seus beijos,

Desenhava nas frestas da parede em gesso,

A paixão e o amor,

E enquanto fodíamos,

Cada um de nós pertencia ao sorriso da lua,

Ela dizia que queria ser bióloga,

Eu…

Quanto a mim,

Nada.

Quero lá eu ser isto e aquilo ou aqueloutro…

Para que quero eu um carro com tantos cavalos?

Nem tenho terreno onde os deixar durante a noite a pastar…

 

O relógio tinha-se esquecido de nós,

O marido dela estava de regresso do outro lado da rua,

E eu,

E eu tinha de apanhar o cacilheiro para o primeiro beliche que encontrasse,

Corria, corria e pensava como poderia um dia desenhar nas nuvens a primeira lágrima da manhã,

Mas como sempre, não o consegui; decididamente não sei desenhar lágrimas,

Não sei o que é uma nuvem…

E o relógio, sorria-me.

 

Amanhã é sábado, meu amor.

E depois?

O que me interessa a mim,

A mim,

Se amanhã é sábado,

Se ontem foi quinta-feira…

Ou se daqui a uns dias será terça-feira,

Se estamos em Janeiro ou em Outubro…

Ou no Natal.

Mas amanhã é sábado, meu amor,

Pois,

Pois,

E o Alfredo que se foda,

Pensas que vou deixá-lo sozinho com uma bala nos cornos?

Amanhã é sábado, meu amor…

Não. Os meus amigos são os meus amigos. E tive-os bons…

 

E eu vou começar a escrever-te cartas.

Olha, cartas de amor,

Com as palavras de um transeunte das noites de Alcântara…

Terra à vista,

Barcos na algibeira,

O comboio não pegou hoje,

Deve estar constipado, meu amor,

Só pode estar constipado.

 

Tantas flores, meu amor,

Tantas flores que lançámos da janela,

E hoje tratam-nos como dois viciados da poesia de AL Berto…

Dos jardins de Belém,

Quando da noite…

Regressavam os Mercedes Topo de Gama,

(CD),

E eu, meu amor,

E eu apontava num pequeno caderninho…

Todas as matrículas do sono.

 

Dias antes de o meu pai morrer,

Enquanto retirávamos a documentação para posteriormente entregar à agência funerária…

Eu, acreditas meu amor,

Eu estava lá; eu e a minha avó Valentina.

Que coisa estranha, meu amor…

Quantos anos eu andei dentro daquela carteira.

Quantos anos…

Quantas noites...

Quantos dias e horas e minutos e segundos e milésimos de segundo…

E eu, meu amor,

E eu nem carteira uso…

E eu, e eu nem um filho tenho para deixar o seu retracto dentro de uma carteira que não uso,

Que não tenho,

Que nunca tive

E que nunca terei.

 

Abraçava-te sabendo que depois de percorreres a ponte…

Te lançarias para o rio.

Mas eu, o covarde de sempre…

Nada,

Eu, nada.

Deixei-te morrer.

Deixei morrer os teus poemas e as palavras dos teus poemas…

 

Hoje, meu amor,

Hoje sou um velho sentado numa pedra cinzenta,

Fumo os cigarros da angustia e da puta que os pariu…

Desenho barcos na areia das tuas coxas…

Escrevo poema no sorriso dos teus seios…

E sei que um dia,

Qualquer dia,

Dentro do dia,

Depois de ser dia…

Morrerei…

E vão dizer,

Sim, meu amor,

Vão dizer que naquela pedra cinzenta,

Naquela pedra de ninguém…

Era a pedra onde se sentava o poeta dos sonhos.

 

 

 

Alijó, 03/05/2023

Francisco Luís Fontinha

Fogueira

 

Nos dias cinzentos

As palavras são lamentos

São os alegres ventos

Que brincam no silêncio sorrir,

E das palavras lamentos

Regressa a vontade de fugir

Enquanto o corpo arde nesta fogueira

Desta fogueira que teima em não partir…

Dos dias cinzentos

Das alvoradas sem nome…

As palavras são lamentos

São lamentos em fome.

 

 

Alijó, 03/05/2023

Francisco Luís Fontinha