sábado, 29 de abril de 2023

O sono

 

O sono

Esse pequeno silêncio que a noite traz

Essa nuvem de espuma das amoreiras em flor,

O sono…”

 

Acrílico s/tela. 70cm x 100 cm. Francisco Luís Fontinha – Alijó

Mercado do luar

 Se eu pudesse escrever qualquer coisa no meu corpo

Certamente

Quase de certeza

Escreveria… vende-se.

 

Vendem-se duzentos e seios ossos

Todos em bom estado

Diga-se

Ossos de um só dono

E em boa conservação

E a bom preço.

 

Mas actualmente

Ninguém quer comprar ossos…

Querem lá eles e elas saber de ossos e afins

E olhem

Menina?

Menino?

Nunca fracturei ou parti qualquer um dos meus ossos.

 

Também poderia escrever no meu corpo

Outras muitas coisas

De que…

Vende-se.

 

Mas por agora

No mercado do luar

Despacho os ossos

Também… não me servem de anda

E daqui a uns tempos parecem mais gonzos à procura de sexo

Ferrugentas navalhas de barbear

De que ossos

Os meus ossos.

 

Se eu pudesse escrever qualquer coisa no meu corpo

Certamente

Quase de certeza

Escreveria… vende-se.

 

Se eu pudesse escrever qualquer coisa no meu corpo

Certamente

Quase de certeza

Escreveria… vende-se

(Vendem-se duzentos e seios ossos

Todos em bom estado)

Poderão ser cozinhados

Fumados…

Ou bebidos

Os ossos têm uma enorme utilidade

E olhem

Menina?

Menino?

Servem para fazer pentes

Pentens que brincam com o cabelo da lua

Há jóias construídas em osso

Outras tantas coisas em osso

Há ossos felizes

Ossos tristes

E os meus;

Os meus ossos

Os meus míseros duzentos e seis ossos.

 

 

 

Alijó, 29/04/2023

Francisco Luís Fontinha

Amar

 Não mates

Não mates a criança que brincava dentro de ti

No bairro da Vila Alice

Ou no Madame Berman

Não mates a criança que brincava

Comigo

Quando nos perdíamos às escondidas

Debaixo do sombreado das mangueiras,

Lembras-te?

De quê, mãe?

Quando desenhavas no olhar

O perfume das mangas

E ficavas sentado… eternidades

Ainda o consegues desenhar?

Não, mãe…

Perdi o traço do perfume das mangas

Já não sei desenhar o perfume das mangas, mãe…

 

Não mates

Não mates meu querido filho

Não mates a criança que brincava dentro de ti

A criança que era apaixonada por barcos

Que amava as estrelas do tecto do quarto…

As estrelas que falavam, mãe?

Sim, claro, essa mesmo…

E chegavas lá

Sentavas-te na cama…

E adormecia, mãe

Adormecia enquanto elas me contavam estórias

E faziam comigo brincadeiras…

Tantas brincadeiras, mãe

 

 

Não mates

Não mates a criança que brincava dentro de ti junto ao Baleizão

Oferecíamos-te gelados

Não gostavas

Oferecíamos-te sumos

Não gostavas

Oferecíamos-te rebuçados

Não gostavas

Oferecíamos-te chocolates

Agora gosto, mãe

Agora como chocolates,

Eras um ranhosinho

É ranhosinha, mãe

Ranhosinha…

Não mates

Não mates o meu menino

Não mates a criança que brincava dentro de ti

E construía papagaios em papel

E coisas

E muitas coisas

Mas… mãe?

Sim?

És tolo

Eu sei, mãe

Eu sei

 

Não mates

Não mates a criança que brincava dentro de ti

Aqui

E ali

Não

Não meu querido filho

Não mates essa pobre criança

Das brincadeiras

Não a mates

Mas, mãe?

Sim…

Que criança é essa que brincava dentro de mim, mãe?

É a vida, meu filho

A vida…

A vida?

O que é viver, mãe?

Viver, meu filho…

Viver é amar

Amar.

 

 

 

Alijó, 29/04/2023

Francisco Luís Fontinha

O menino dos calções e das estrelas em papel

 Vou contar-te uma história.

Uma história?

Sim, uma história…

Há muitos anos,

Muitos?

Sim, muito, muitos…

Havia um menino, o menino dos calções, que desenhava no mar barcos em papel e tinha no tecto onde dormia, estrelas, estrelas que falavam,

Que fixe, estrelas que falavam!

As estrelas falam?

Nem todas, estas sim.

O menino passava as tardes debaixo da sombra das mangueiras a sonhar, sonhava que um dia, um qualquer dia, voava, que um qualquer dia todo o mar era só dele, sonhava, sonhava muito,

O que é sonhar?

Sonhar…

Sonhar é vestir-se de pássaro, e

Voar.

Sonhar é vestir-se de pássaro e voar sobre a cidade, quando a cidade, toda a cidade, está escondida no cacimbo, sonhar é vestir-se de pássaro e voar em cada manhã que acorda, quando o sono já dorme,

Também posso vestir-me de pássaro e voar?

Sim, claro, claro que sim… e deves.

Um dia, o menino dos calções e das estrelas em papel, um qualquer dia, descobriu uma caixinha muito pequenina, muito

Muito, muito?

Sim… muito pequena, e nesse dia, um qualquer dia, tentou abrir a caixinha, tentou, tentou… até que consegui,

O que tinha a caixinha?

Olha… um coração,

Um coração?

O que é um coração?

Bem…

Para mim, que estudo engenharia mecânica e que nunca serei engenheiro, o coração é uma bomba, apenas isso, uma bomba que não se cansa de trabalhar, noite e dia, dia e noite, até que um dia, qualquer dia, pára. Para outros, o coração é amor,

O menino pegou com muito jeitinho no coração, olhou-o como se olham as flores, com muito cuidado (olha, nunca trates mal as flores)

Porquê?

Porque as flores também sofrem… e precisam de amor e carinho, tal como as estrelas que falavam e que brincavam todas as noites no quarto do menino dos calções e das estrelas em papel,

E enquanto o menino fazia festinhas no coração, este… este sorriu-lhe e disse-lhe

Olha, gosto muito de ti.

O menino não queria acreditar, e desde então, até hoje, o menino tinha sonhos, vestir-se de pássaro e voar…

O menino acreditava, que um dia, um qualquer dia, o mar lhe entraria pela janela, e o levava para muito longe, onde outros meninos, também eles com calções e que tinham estrelas em papel no tecto do quarto e que também elas, como as do outro menino falavam, seria sempre o menino dos calções,

E hoje, ainda é o menino dos calções?

Não, não…

Com os anos, o menino deixou de se vestir de pássaro e de voar…

E a cidade que se escondia dentro do cacimbo?

Está lá…

Está lá, muito longe… tal como as asas do menino dos calções e das estrelas em papel.

Nunca deixes de te vestires de pássaro e voar…

 

 

 

 

Alijó, 29/04/2023

Francisco Luís Fontinha

Junto ao mar

 Junto ao mar

 

 

 

Toda a vida

Sem vida,

Toda a vida desta maldita vida,

De viver… sem vida,

Toda a vida,

Uma vida,

Uma vida de viver,

De viver,

Sem vida.

 

E da vida que nunca tive,

Uma vida,

Vivida,

Viver cada dia,

Em cada dia

Desta vida,

Do dia sem poesia.

 

Uma vida recheada,

Recheada de não vida,

Viver a cada dia,

Um dia,

De dia,

Sem dia…

O dia de viver…

Viver?

Quando nunca tive vida,

E da vida que me obrigam a viver…

Há a saudade daquela vida…

Que nunca tive,

Que nunca quis ter…

Esta vida de viver…

E esperar,

Um dia,

Um dia livremente morrer,

Morrer junto ao mar.

 

 

 

Alijó, 29/04/2023

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 27 de abril de 2023

As acácias da minha infância

 Porque acordam em tua mão,

Meu amor,

As acácias da minha infância,

As mesmas acácias que quando eu perguntava ao meu pai

(porque choram as acácias, pai?)

Nunca me respondia,

Sorria…

E voou numa madrugada de Verão em direcção à luz,

 

Porque acordam em tua mão,

Meu amor,

Na clandestinidade do silêncio,

Quando do alto desta pedra,

Desta pedra onde se senta a Terra…

As flores que tinham morrido no meu jardim,

 

Porque acordam em tua mão,

Meu amor,

Enquanto todas as noites,

Em todos os luares,

Recebo na minha mão…

Todas estas palavras,

Porque acordam elas,

Meu amor,

Dentro de ti?

 

Porque acordam em tua mão,

Meu amor,

As telas da minha madrugada,

As cores do desejo,

Quando sei que na alvorada,

Um pequeno rio de luz…

Envolve o teu corpo!

 

 

 

Alijó 27/04/2023

Francisco

Acrílico s/tela – Francisco Luís Fontinha – Alijó