“O sono
Esse pequeno silêncio que
a noite traz
Essa nuvem de espuma das
amoreiras em flor,
O sono…”
Acrílico s/tela. 70cm x
100 cm. Francisco Luís Fontinha – Alijó
“O sono
Esse pequeno silêncio que
a noite traz
Essa nuvem de espuma das
amoreiras em flor,
O sono…”
Acrílico s/tela. 70cm x
100 cm. Francisco Luís Fontinha – Alijó
Se eu pudesse escrever qualquer coisa no meu corpo
Certamente
Quase de certeza
Escreveria… vende-se.
Vendem-se duzentos e
seios ossos
Todos em bom estado
Diga-se
Ossos de um só dono
E em boa conservação
E a bom preço.
Mas actualmente
Ninguém quer comprar
ossos…
Querem lá eles e elas saber
de ossos e afins
E olhem
Menina?
Menino?
Nunca fracturei ou parti qualquer
um dos meus ossos.
Também poderia escrever
no meu corpo
Outras muitas coisas
De que…
Vende-se.
Mas por agora
No mercado do luar
Despacho os ossos
Também… não me servem de
anda
E daqui a uns tempos
parecem mais gonzos à procura de sexo
Ferrugentas navalhas de
barbear
De que ossos
Os meus ossos.
Se eu pudesse escrever
qualquer coisa no meu corpo
Certamente
Quase de certeza
Escreveria… vende-se.
Se eu pudesse escrever
qualquer coisa no meu corpo
Certamente
Quase de certeza
Escreveria… vende-se
(Vendem-se duzentos e
seios ossos
Todos em bom estado)
Poderão ser cozinhados
Fumados…
Ou bebidos
Os ossos têm uma enorme utilidade
E olhem
Menina?
Menino?
Servem para fazer pentes
Pentens que brincam com o
cabelo da lua
Há jóias construídas em
osso
Outras tantas coisas em
osso
Há ossos felizes
Ossos tristes
E os meus;
Os meus ossos
Os meus míseros duzentos
e seis ossos.
Alijó, 29/04/2023
Francisco Luís Fontinha
Não mates
Não mates a criança que
brincava dentro de ti
No bairro da Vila Alice
Ou no Madame Berman
Não mates a criança que
brincava
Comigo
Quando nos perdíamos às
escondidas
Debaixo do sombreado das
mangueiras,
Lembras-te?
De quê, mãe?
Quando desenhavas no
olhar
O perfume das mangas
E ficavas sentado…
eternidades
Ainda o consegues
desenhar?
Não, mãe…
Perdi o traço do perfume
das mangas
Já não sei desenhar o
perfume das mangas, mãe…
Não mates
Não mates meu querido
filho
Não mates a criança que
brincava dentro de ti
A criança que era apaixonada
por barcos
Que amava as estrelas do
tecto do quarto…
As estrelas que falavam, mãe?
Sim, claro, essa mesmo…
E chegavas lá
Sentavas-te na cama…
E adormecia, mãe
Adormecia enquanto elas
me contavam estórias
E faziam comigo
brincadeiras…
Tantas brincadeiras, mãe
Não mates
Não mates a criança que
brincava dentro de ti junto ao Baleizão
Oferecíamos-te gelados
Não gostavas
Oferecíamos-te sumos
Não gostavas
Oferecíamos-te rebuçados
Não gostavas
Oferecíamos-te chocolates
Agora gosto, mãe
Agora como chocolates,
Eras um ranhosinho
É ranhosinha, mãe
Ranhosinha…
Não mates
Não mates o meu menino
Não mates a criança que
brincava dentro de ti
E construía papagaios em
papel
E coisas
E muitas coisas
Mas… mãe?
Sim?
És tolo
Eu sei, mãe
Eu sei
Não mates
Não mates a criança que
brincava dentro de ti
Aqui
E ali
Não
Não meu querido filho
Não mates essa pobre
criança
Das brincadeiras
Não a mates
Mas, mãe?
Sim…
Que criança é essa que
brincava dentro de mim, mãe?
É a vida, meu filho
A vida…
A vida?
O que é viver, mãe?
Viver, meu filho…
Viver é amar
Amar.
Alijó, 29/04/2023
Francisco Luís Fontinha
Vou contar-te uma história.
Uma história?
Sim, uma história…
Há muitos anos,
Muitos?
Sim, muito, muitos…
Havia um menino, o menino
dos calções, que desenhava no mar barcos em papel e tinha no tecto onde dormia,
estrelas, estrelas que falavam,
Que fixe, estrelas que
falavam!
As estrelas falam?
Nem todas, estas sim.
O menino passava as
tardes debaixo da sombra das mangueiras a sonhar, sonhava que um dia, um
qualquer dia, voava, que um qualquer dia todo o mar era só dele, sonhava,
sonhava muito,
O que é sonhar?
Sonhar…
Sonhar é vestir-se de
pássaro, e
Voar.
Sonhar é vestir-se de
pássaro e voar sobre a cidade, quando a cidade, toda a cidade, está escondida
no cacimbo, sonhar é vestir-se de pássaro e voar em cada manhã que acorda,
quando o sono já dorme,
Também posso vestir-me de
pássaro e voar?
Sim, claro, claro que sim…
e deves.
Um dia, o menino dos
calções e das estrelas em papel, um qualquer dia, descobriu uma caixinha muito
pequenina, muito
Muito, muito?
Sim… muito pequena, e
nesse dia, um qualquer dia, tentou abrir a caixinha, tentou, tentou… até que
consegui,
O que tinha a caixinha?
Olha… um coração,
Um coração?
O que é um coração?
Bem…
Para mim, que estudo
engenharia mecânica e que nunca serei engenheiro, o coração é uma bomba, apenas
isso, uma bomba que não se cansa de trabalhar, noite e dia, dia e noite, até
que um dia, qualquer dia, pára. Para outros, o coração é amor,
O menino pegou com muito jeitinho
no coração, olhou-o como se olham as flores, com muito cuidado (olha, nunca
trates mal as flores)
Porquê?
Porque as flores também
sofrem… e precisam de amor e carinho, tal como as estrelas que falavam e que brincavam
todas as noites no quarto do menino dos calções e das estrelas em papel,
E enquanto o menino fazia
festinhas no coração, este… este sorriu-lhe e disse-lhe
Olha, gosto muito de ti.
O menino não queria
acreditar, e desde então, até hoje, o menino tinha sonhos, vestir-se de pássaro
e voar…
O menino acreditava, que
um dia, um qualquer dia, o mar lhe entraria pela janela, e o levava para muito
longe, onde outros meninos, também eles com calções e que tinham estrelas em
papel no tecto do quarto e que também elas, como as do outro menino falavam, seria
sempre o menino dos calções,
E hoje, ainda é o menino
dos calções?
Não, não…
Com os anos, o menino
deixou de se vestir de pássaro e de voar…
E a cidade que se
escondia dentro do cacimbo?
Está lá…
Está lá, muito longe… tal
como as asas do menino dos calções e das estrelas em papel.
Nunca deixes de te
vestires de pássaro e voar…
Alijó, 29/04/2023
Francisco Luís Fontinha
Junto ao mar
Toda a vida
Sem vida,
Toda a vida desta maldita
vida,
De viver… sem vida,
Toda a vida,
Uma vida,
Uma vida de viver,
De viver,
Sem vida.
E da vida que nunca tive,
Uma vida,
Vivida,
Viver cada dia,
Em cada dia
Desta vida,
Do dia sem poesia.
Uma vida recheada,
Recheada de não vida,
Viver a cada dia,
Um dia,
De dia,
Sem dia…
O dia de viver…
Viver?
Quando nunca tive vida,
E da vida que me obrigam
a viver…
Há a saudade daquela vida…
Que nunca tive,
Que nunca quis ter…
Esta vida de viver…
E esperar,
Um dia,
Um dia livremente morrer,
Morrer junto ao mar.
Alijó, 29/04/2023
Francisco Luís Fontinha
Porque acordam em tua mão,
Meu amor,
As acácias da minha
infância,
As mesmas acácias que
quando eu perguntava ao meu pai
(porque choram as
acácias, pai?)
Nunca me respondia,
Sorria…
E voou numa madrugada de Verão
em direcção à luz,
Porque acordam em tua
mão,
Meu amor,
Na clandestinidade do
silêncio,
Quando do alto desta
pedra,
Desta pedra onde se senta
a Terra…
As flores que tinham
morrido no meu jardim,
Porque acordam em tua
mão,
Meu amor,
Enquanto todas as noites,
Em todos os luares,
Recebo na minha mão…
Todas estas palavras,
Porque acordam elas,
Meu amor,
Dentro de ti?
Porque acordam em tua
mão,
Meu amor,
As telas da minha
madrugada,
As cores do desejo,
Quando sei que na
alvorada,
Um pequeno rio de luz…
Envolve o teu corpo!
Alijó 27/04/2023
Francisco